A Coroação de Carlos III
70 anos depois o Reino Unido e o mundo assistiram à mais antiga representação de afirmação e legitimação do poder. A coroação de Carlos III, que teve como epicentro a Abadia de Westminster, em Londres, foi, para muitos, o acontecimento do século, onde a pompa e toda a cenografia envolvida nos fez viajar pela história e pela cultura britânicas.
Nos dias que antecederam a coroação, os amantes da tradição, do protocolo e do cerimonial, os investigadores em simbologia e semiótica, mas também os especialistas em cinema e televisão, viveram uma roda vida de emoções. Foi preciso esperar 70 longos, mas prolíficos, anos, para se voltar a assistir ao acontecimento de uma geração em busca de fascínio e exaltação. Na história, a coroação do monarca britânico representa o garante da imortalização de um passado glorioso, um ritual com mais de mil anos, recuando até ao período anglo-saxónico, ajudando a projetar reis e rainhas como Santo Eduardo “O Confessor” (mentor da construção da Abadia de Westminster), Guilherme o Conquistador, Isabel I, Jorge III, a rainha Vitória ou Jorge VI (um dos heróis da II Guerra Mundial), sem olvidar o papel notável de Isabel II, a última soberana.
Em toda a cerimónia que o globo teve oportunidade de experienciar, naquela que foi, eventualmente a transmissão televisiva mais visionada de sempre, assistiu-se a todo um rito simbólico de perpetuação do poder, da unificação das instituições da “Velha Albion” em torno de uma das essências fundamentais de se ser britânico: a sua relação com a Coroa e a Família Real, tão importante como outras tradições identitárias como o “five o’clock tea”, o “boxing day”, o fim de tarde passado em pub’s, o generoso “english breakfast”, as paradas militares ao som de gaitas-de-foles escocesas ou o render da guarda no Palácio de Buckingham.
Se é verdade que, ao longo dos séculos, a afinidade dos súbditos com a Coroa nem sempre foi das melhores, certo é que a ligação que tanto Jorge VI e a sua filha Isabel II criaram com o povo britânico, gerou alta percentagem de aceitação, mas sobretudo de gratidão, como se pôde constatar em setembro de 2022, quando milhões de súbditos, tanto das possessões de “Sua Majestade”, como dos muitos países do antigo império, agora unidos numa “Commonwealth of Nations” e gente de toda a parte, se mantiveram firmes e hirtos, enfrentando horas e horas de espera, numa fila interminável, com a esperança de oferecer um último tributo à soberana que mais tempo reinou na ilha banhada pelo Mar do Norte e o Canal da Mancha (a que os britânicos chamam o seu “English Channel”).
Uma manifestação visual tremenda de sentido histórico, num momento particularmente difícil para a Grã-Bretanha, a braços com uma crise que poderá levar a uma desagregação de uma união firmada no séc. XVI, com a anexação de Gales pela Inglaterra e que teve continuidade com os Atos de 1707, quando Inglaterra e Escócia se uniram para formar a Grã-Bretanha e ainda um último episódio: o Ato da União de 1800, que se caracterizou pela agregação da Irlanda no novo Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda.
A coroação procura transmitir uma relação profunda com a história de um povo, os seus líderes e as instituições que representam, com as joias da Coroa a afirmarem-se como símbolos imutáveis de autoridade, outrora divina, atualmente alvo de escrutínio, muitas vezes “demoníaco”, da opinião pública.
Foram muitos os símbolos de natureza quase intemporal que estiveram presentes na dignificação do ato da coroação de Carlos III. A “regalia”, termo latino que define a prerrogativa do direito real aos olhos de um Estado, caracteriza-se por um conjunto de insígnias, símbolos ou apetrechos indicativos de estatuto real, bem como direitos, prerrogativas e privilégios do soberano, ao mesmo tempo que o ato da coroação tem tanto de religioso como de dignificação do poder.
No contexto da monarquia do Reino Unido essa realidade é levada a um nível impressionante tanto de cenografia, onde nada é deixado ao acaso para causar impacto visual, mas também de natureza emocional.
No centro da antiga cerimónia (que não foi tão longa como dos seus antecessores nem com tantos convidados — a coroação de Isabel II, que durou cinco horas e contou com um impressionante número de oito mil convidados presentes na Abadia de Westminster — de forma que o ato fosse ajustado à realidade dos tempos modernos) está um conjunto de artefactos sagrados conhecidos coletivamente como insígnias da coroação. Ao longo da solenidade, o novo monarca ostentou não uma, mas duas coroas: a Coroa de Santo Eduardo e a Imperial State Crown. A primeira, uma peça central em toda a harmonia do ato, usada apenas no auge da cerimónia, quando colocada na cabeça do rei Carlos III, no "momento da coroação” e que depois foi colocada junto do túmulo de Santo Eduardo o Confessor, em forma de comprometimento do rei com a história dos seus antecessores no trono. A segunda coroa ostentada na coroação é considerada uma "coroa de trabalho", isto é, de comprometimento do monarca com a chefia do Estado. Enquanto a coroa de Santo Eduardo é usada apenas na cerimónia de coroação, a “Imperial State Crown” é normalmente utilizada em ocasiões formais do Estado, incluindo a abertura anual do Parlamento (a State Opening of Parliament). Foi com esta última que Carlos III se fez mostrar aos súbditos na procissão final da Abadia de Westminster até ao Palácio de Buckingham, a bordo do “Gold State Coach”, e mais tarde surgir à varanda (o “balcony) do palácio, juntamente com “quase” toda a Família Real.
Mas não é só de coroas que é composta a regalia da coroação. Para além de uma série de mantos rituais, foi possível vislumbrar o “Orbe do Soberano”. Representando o poder universal do monarca foi colocado na mão direita do monarca na primeira parte da cerimónia, antes de ser transferida para o altar da abadia para o momento da coroação. O orbe tem um significado de forte simbologia religiosa, ao representar o mundo cristão, dividido em três partes, representando os três continentes conhecidos nos tempos medievais e encimado por uma cruz.
Da cerimónia fazem parte também dois ceptros: o Ceptro do Soberano com Cruz (Sovereign's Scepter with Cross), que, na sua extremidade, ostenta um dos mais valiosos diamantes do mundo, o Cullinnan I, encontrado na África do Sul, em 1905. Este ceptro representa o poder temporal do monarca e o seu comprometimento em servir a nação; o segundo, o Ceptro do Soberano com Pomba (Sovereign's Scepter with Dove”) na extremidade, representa a sua união espiritual como a Igreja Anglicana (da qual é “Governador Supremo”).
Mas de todos os objetos nenhum tem maior simbolismo que a “Colher da Unção”, por duas razões: a unção do rei é o ato mais sagrado da coroação, e o mais privado, já que nem os convidados presentes na abadia nem as televisões podem assistir a esse momento de enorme profundidade em que o peito de Carlos III será ungido com óleos sagrados (uma mistura de óleos e bálsamos, cuja receita data do séc. XVI), ao som da magistral composição de Georg Friedrich Händel, “Zadock the Priest”; a segunda razão que alude à importância transcendental da “Colher da Unção” é de que é o objeto mais antigo, datando do séc. XII, já que os restantes símbolos (coroas e ceptros) datam apenas do séc. XVII. A regalia anterior foi destruída no período de vigência de Oliver Cromwell, na única experiência republicana vivida na Grã-Bretanha e que levou à execução de Carlos I. A Colher da Unção apenas “sobreviveu” porque foi vendida a um colecionador que prontamente ofereceu a Carlos II (que teve como sua esposa a rainha Catarina de Bragança) quando este assumiu o trono, em 1661, devolvendo a monarquia ao Reino Unido.
Refira-se que também a rainha consorte, Camila, teve direito à sua “regalia”, desta feita a Queen Mary’s Crown, criada exclusivamente para a bisavó de Carlos III aquando da coroação do seu marido, o rei Jorge V, em 1911.
Por fim, uma nota para a música que ecoou pelas naves da abadia. Peças de enorme profundidade religiosa, mas também de orgulho nacional como “I vow to Thee My Country” composta por Gustav Holst e Cecil Spring, “Crown Imperial” e “Pomp and Circumstance” de Edward Elgar, várias peças barrocas de Purcell e Händel, culminando com o hino “God Save the King”, que se presume ter sido composto por John Bull em 1619.
Fotografias | Fonte twiter: The Royal Family
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