A Enigmática Varanda dos Reis da Igreja de S. Gonçalo
A cidade banhada pelo rio Tâmega deve muito da sua história ao culto a S. Gonçalo, ao mosteiro e à ponte que levam o seu nome. Conhecido como o santo casamenteiro das “velhas” e encalhadas”, a sua igreja é o epicentro de várias lendas.
Protegida pelas serras do Marão e da Aboboreira, a origem dos primeiros assentamentos populacionais onde hoje se ergue Amarante data da Idade do Ferro (onde encontramos descrições e objetos arqueológicos que provam a existência de povoados castrejos), mas é a partir da ocupação romana que “Amaranthus”, como era conhecida na época, que ganhou relevo, com a construção da primeira ponte sobre o rio Tâmega, curso fluvial que nasce na serra de San Mamede, na província galega de Ourense, e que desde sempre foi uma importante via de comunicação, ligando importantes cidades como Chaves, Cabeceiras de Basto, Celorico de Basto, Mondim de Basto, Ribeira de Pena e ainda Marco de Canaveses, num percurso de 145 quilómetros até desaguar no rio Douro, na localidade de Entre-os-Rios.
A origem toponímica de Amarante é incerta, com autores a defenderem a tese de que o nome tem origem na expressão latina “Ante Maronis”, identificando as terras “Antes do Marão”, outros argumentam que provém de “Amarantus”, centurião romano, que, segundo a tradição, terá fundado a cidade.
Por Amarante andaram suevos e visigodos, sem esquecer os muçulmanos, até se tornar parte do território cristão conquistado pelos reis asturo-leoneses.
É no contexto do reforço do poder real, mas também eclesiástico, que nos aparece a figura que tem tanto de histórica como de lendária: S. Gonçalo. Nascido na pequena aldeia de Arriconha, atual concelho de Vizela, Gonçalo é apelidado de santo sem nunca o ter sido. Na realidade, este frade que envergou as vestes da Ordem dos Dominicanos é apenas beato, estatuto concedido pelo Papa Júlio III em 1561, mas como a veneração popular em grande parte não olha a posições ou hierarquias, certo é que a imagem de santo é aquela que perdurou. A Gonçalo se atribuiu vários milagres, relacionados com a construção tanto da ermida que estaria na base da atual igreja, como da ponte sobre o Tâmega, prodígios que vão desde o brotar de água e vinho de pedras com o simples tocar do seu bordão a garantir que não faltassem peixes nas redes dos pescadores ou a célebre lenda dos bois de D. Loba. Mas é também conhecido como o padroeiro das “velhas” ou “encalhadas” por via de um “contrato” que Gonçalo - na altura já apelidado de santo pelas gentes de Amarante – teria feito com Santo António: certo dia, o santo de Lisboa e de Pádua ter-se-á mostrado desagrado por Gonçalo lhe estar a fazer concorrência nas lides casamenteiras, ao que o dominicano lhe terá respondido que a partir desse momento apenas casaria as “velhas”, enquanto as “novas” ficariam sobre proteção de António. Não conhecedoras desse contrato as jovens de Amarante estranharam o porquê das suas orações a S. Gonçalo não estarem a funcionar em comparação com as “velhas” e “encalhadas” da cidade, tornando-se famosa a seguinte cantilena:
“S. Gonçalo de Amarante,
Casamenteiro das velhas
Porque não casas tu as novas?
Que mal te fizeram elas?”
Desde então S. Gonçalo dedicou-se a ajudar as mais desafortunadas em busca do seu amor, surgindo o costume (que hoje já não se pratica), de puxar três vezes o fio das vestes da imagem de santo (datada do séc. XVI e que agora se encontra – desde o último grande restauro do templo, em 2022 - num altar-capela, à direita do altar-mor), dando origem ainda a uma célebre iguaria, o doce fálico de S. Gonçalo.
Santo (ou, na verdade, beato) também muito ligado à proteção de peregrinos - já que ao edificar a ponte sobre o Tâmega proporcionou a passagem de inúmeros peregrinos em direção a Santiago de Compostela, ficando famosa a passagem do matemático e escritor da Universidade de Salamanca, Diego de Torres Villarroel, quando realizou a peregrinação jacobeia em 1737, por uma rota que hoje conhecemos como o “Caminho de Torres” – certo é que que a sua veneração prosperou. E da ermida nasce a igreja e o convento dominicano patrocinados pelo rei D. João III e a sua esposa Catarina de Áustria, com as obras a arrancarem no ano de 1543 e prolongando-se até ao séc. XVIII.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Panorâmica lateral da Igreja de S. Gonçalo.
A Igreja (que ainda hoje guarda o corpo de S. Gonçalo) é um misto de estilos arquitetónicos que vão desde o renascentista ao maneirista, e do barroco até ao neoclássico do séc. XIX. Com o templo já terminado no tempo de Filipe I, a partir de 1683 teve início a construção de duas estruturas ímpares da igreja de S. Gonçalo de Amarante: o pórtico (em forma de retábulo, onde se encontram presentes as esculturas de S. Gonçalo, S. Tomás de Aquino, Nossa Senhora do Rosário, São Pedro Mártir (frade dominicano martirizado às mãos dos cátaros) e ainda, a ladear o portal, S. Francisco e S. Domingos de Gusmão; e a Varanda dos Reis, peça arquitetónica única em Portugal, em forma de “loggia”, onde se encontram esculpidas, nas suas colunas, D. João III, D Sebastião, Henrique I e Filipe I (que chegou a apoiar a canonização do beato amarantino, contudo sem resultados práticos. Por que razão é que estas esculturas aqui se encontram é ainda hoje um enigma, sobretudo pelo facto do traço escultórico de cada imagem serem, em alguns casos, bastante diferentes, entre si. A tradição refere que os monarcas representados ali se encontram porque assistiram pessoalmente às festas de S. Gonçalo, cuja data litúrgica se celebra a 10 de janeiro, dia do seu falecimento (apesar das festas se centrarem em Amarante, nos dias de hoje, no primeiro fim de semana de junho). As referências a esta versão são escassas, existindo documentos que exultam, por outro lado, e na verdade, o apoio oferecido pelos quatro reis à comunidade dominicana para a construção da igreja e convento. A razão das esculturas serem diferentes, quando em comparação, prende-se com o facto de, segundo os estudiosos destas matérias, terem sido esculpidas por diferentes mestres, com destaque para os pedreiros Manuel do Couto, António Gomes e os irmãos João e Mateus Lopes.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Claustro maneirista do Convento de S. Gonçalo.
Desde 1973 os seus espaços do convento foram adaptados para receber o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, que, desde, 1994, se tornou um dos mais importantes ex-líbris da arte contemporânea em Portugal, prestando a devida homenagem à vida e obra do notável pintor amarantino.
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Emilia Carvalho
Texto muito interessante e sucinto.