Como regressar à nova normalidade?
Covid-19: O que mudou nas nossas vidas?
Em 2020 a realidade que conhecíamos alterou-se de forma drástica e inesperada. Não podíamos estar psicologicamente preparados para o que estava a acontecer, como o não estávamos também fisicamente. Foram precisos meses para sequer percebermos as especificidades deste vírus [covid-19], e muita resiliência para aprendermos a estar com ele. Este processo de aprendizagem obrigou-nos a fazer uso das nossas melhores competências emocionais, para que, aos poucos, pudéssemos adaptar-nos às circunstâncias que nos eram impostas, primeiro pela doença em si, depois pelas condicionantes que trazia com ela, e ainda pelas consequências que causou e continua a causar nas nossas vidas e na ordem do próprio mundo.
O esforço diário de estarmos longe de muitos dos que amamos, de alterarmos rotinas, de perdermos liberdade. O isolamento e a solidão. O medo de ficarmos doentes, de não podermos tratar dos nossos, de os contagiarmos, de contagiarmos terceiros, de sermos marginalizados por isso. A perda, a ausência de despedidas, o luto que fica por fazer. As carências afetivas, emocionais, sociais, económicas. Estas foram algumas das muitas dificuldades que sentimos e que nos transformaram por dentro, de formas ainda muitas vezes difíceis de compreender e de verbalizar.
Em consulta, oiço algumas vezes a pergunta: “afinal, o que é o normal?”. Bom, o normal pode ser entendido como algo que é estatisticamente comum a uma maioria de pessoas, e nesse sentido, andar de máscara, por exemplo, é agora normal. Mas o normal também pode ser entendido de uma outra forma, como aquilo que é funcional mas que pode ser diferente de pessoa para pessoa, e nesse caso, o exemplo de andar de máscara pode continuar a não ser, para muitos, um comportamento normal.
A normalidade pode ainda ser vista de um ponto de vista dinâmico, ou seja, ela sofre alterações durante o ciclo de vida do indivíduo, estando sujeita às crises e transições sofridas pelo mesmo e ao seu desenvolvimento biopsicossocial, funcionando, pois, como um processo e não como um estado. Se encararmos, então, o conceito de normalidade em toda a sua complexidade, percebemos que uma das características que encontramos nele, seja qual for o prisma da nossa observação, é a sua subjetividade.
Por esta ordem de ideias, voltar à normalidade será um exercício de reequilíbrio individual e idiossincrático, no qual cada um de nós terá que fazer um balanço introspetivo de necessidades e ferramentas, e perceber qual o seu caminho e como o caminhar. Precisamos de olhar para dentro e encontrar os significados que damos a toda esta experiência, ao nosso papel na mesma, e ao que o momento presente nos traz, física, mental e emocionalmente, para que possamos projetar-nos no futuro, com clareza e consciência.
Essencialmente precisamos de conhecer-nos profundamente, sem medo do que possamos - e vamos certamente - encontrar de diferente, abraçando essa mudança com curiosidade, gentileza e compaixão, para construirmos o nosso normal depois de tudo isto. Toda a mudança gera resistência e é importante que cada um de nós perceba as facetas que a sua resistência assume, isto é, de que maneira - só sua - é que está a impedir-se de aceitar a mudança e de se adaptar positivamente à mesma. Para isto é absolutamente essencial que desenvolvamos a nossa inteligência emocional.
Os momentos de crise, como o que temos estado a passar, trazem sempre com eles o caos e a inevitabilidade de termos que lidar com as difíceis emoções que ele provoca, mas, ao mesmo tempo, também nos proporcionam uma oportunidade de crescimento, de renovação. Este trabalho de nos tornarmos amigos das nossas emoções difíceis, de ouvirmos o que têm para nos dizer, de as conhecermos intimamente, permite-nos ganhar perspetiva sobre elas. Permite-nos perceber que, apesar de muito do que vivemos fugir ao nosso controlo, temos poder sobre a forma como encaramos o que vivemos, porque temos poder para observar e nos diferenciarmos do que sentimos e do que pensamos. E é isso que nos dá poder sobre o nosso comportamento. Quando ganhamos esta consciência, ganhamos a nossa liberdade. A liberdade de agir, sobre nós próprios e sobre o que nos rodeia, no sentido do nosso equilíbrio, do nosso desenvolvimento, da nossa evolução.
O psicólogo e professor Dacher Keltner chamou a atenção para o facto de que, como espécie, a nossa evolução não se baseou verdadeiramente no fenómeno da seleção natural pela lei do mais forte, como parecia ser a interpretação de Darwin, mas sim na nossa capacidade de nos interligarmos, na nossa empatia, no nosso sentido de interconectividade e de união, na nossa gentileza, na nossa compaixão, como aliás concluiu o próprio Darwin em algumas das suas reflexões.
Sabemos hoje que as espécies que habitam este planeta há mais tempo, são aquelas que vivem em comunidade, e não as que funcionam em regime predatório e solitário. A inteligência emocional não se limita a saber olhar para dentro, reconhecendo e lidando com as nossas emoções com maior bondade e aceitação, mas também a olhar em torno de nós com a mesma atitude. Temos que criar redes de apoio nas quais cuidamos e somos cuidados, temos que construir e fortalecer laços. Esta pandemia e a consequente necessidade de confinamento afastaram-nos uns dos outros no aspeto físico, mas o regresso à normalidade, seja ela o que for para cada um de nós, só pode ser feito com um novo sentido de conexão e de cooperação, de humanidade.
O caminho que cada um vai fazer é único, mas não deve ser feito de forma solitária. Temos que aprender a pedir ajuda sem medo do julgamento, a sentir-nos gratos, e a canalizar alguma da nossa energia para ajudar outros, com a generosidade e criatividade que nos distinguem.
John Donne escreveu um dia:
“No man is an island,
entire of itself,
every man is a piece of the continent,
a part of the main.”
Que o fim do confinamento nos permita perceber que só ligando-nos uns aos outros com intencionalidade consciente, podemos encontrar o nosso “eu” e regressar, pelos nossos próprios passos, à normalidade.
Autora | Ruth Ministro, Psicóloga clínica no REACH - Clínica de Saúde Mental, especializada em Psicoterapias Cognitivo-Comportamentais de 3ª Geração.
Fotografia | Alexandra Koch