A Possibilidade da Amizade

A Possibilidade da Amizade

Foi ao ler um livro clássico de cultura (jurídica) romana, da autoria de Fritz Schulz, que conclui pouco saber sobre a amizade. O que eu até esse momento supunha saber mais não era do que uma sua tépida manifestação.

A passagem encontrou-me num capítulo sobre a "fidelidade" (a fides romana), em cuja parte conclusiva Schulz se debruça sobre a amicitia, a amizade. Depois de explicar algumas das suas expressões, assim remata o texto: "É talvez possível viver como um ser isolado numa metrópole moderna, mas não no mundo romano: o 'individualismo romano' não é senão uma lenda".

Noto que, quando li a frase, sabia já dessa especial atenção do mundo clássico à amizade, simultaneamente objeto do canto poético, do tratado filosófico, do elogio narrativo. Também não ignorava o genérico desinteresse do mundo antigo pela "individualidade". E não me era desconhecido o ideal de participação na pólis ou na civitas, favorável à constituição de relações interpessoais. Ainda assim, nada me preveniu o efeito que aquelas observações em mim produziriam.

É que tocam em corda muito fina. Delas se depreende que, no mundo antigo, a amizade não é apenas questão de "predileção afetiva": é mesmo condição existencial. O vínculo de amizade não expressa apenas a estima e a consideração pelo outro enquanto outro, mas igualmente a gratidão e o reconhecimento pelo outro enquanto nosso benfeitor, por um lado, e a prontidão e a lealdade em relação ao outro enquanto beneficiário do nosso serviço. A amizade não é, portanto, apenas o sentimento de estima de duas pessoas na sua recíproca alteridade, mas o vínculo relacional de duas pessoas no cruzamento das respetivas vidas, tornado essencial à respetiva sobrevivência. É a experiência de compartilhar um mesmo destino.

Era assim com a amizade. Mas também com fazer parte de um povo; com pertencer a um lugar; com ser de uma família. Eram estas relações de pertença, e não o anonimato da vida individual, que davam possibilidade à vida humana.

O livro bíblico de Rute, testemunho do antigo mundo judaico, manifesta-nos de modo particularmente vívido a força destes vínculos interpessoais em mais uma dessas passagens que, gravando-se na memória, nos acompanham pela vida. Somos colocados diante de duas pessoas sós, em condição de grande fragilidade. De um lado, uma mãe imigrante, viúva, e cujos dois filhos acabam de morrer não tem país, nem lugar, nem família, nem amigos. Do outro, a sua nora, tornada também viúva, e que ingressara numa família que agora parecia ruir. A primeira mulher chama-se Noemi; a segunda Rute. Noemi, julgando em nada podendo prestar a Rute, insiste em que Rute parta e refaça a sua vida. Mas Rute replica: "Não insistas para que te deixe, pois onde tu fores, eu irei contigo, e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus. Onde morreres, também eu quero morrer e ali serei sepultada. Que o Senhor me trate com rigor e ainda o acrescente, se até mesmo a morte me separar a ti." (trad. OFMCap) São os frágeis fios da vida a cruzarem-se. Mesmo se continuam a ser os mesmos fios: que diferença vai entre estarem ou não entretecidos!

Pois bem: a paulatina eliminação deste rendilhado de vínculos interpessoais caracterizará a construção da "época moderna". O ser humano continua a procurar a segurança e estabilidade; fá-lo, porém, já não mediante relações interpessoais, mas pela criação de estruturas institucionais que forneçam a cada um aquilo de que por si só não dispõe. Tal é a função do Mercado, ou, se este não é capaz, se é ineficiente ou se é indesejado, do Estado. A maior virtude do cidadão é agora pagar impostos ou contribuições, alimentando o funcionamento das instituições comuns. Semelhante transição da interpessoalidade para a individualidade e impessoalidade surpreende-se nos diferentes aspetos da vida. O afeto familiar é substituído por prestações especializadas de serviços olhe-se as creches, veja-se os lares. O convívio da amizade dá lugar ao consumo justaposto de entretimento. Colocar um crachá na lapela ou um autocolante no laptop — é "ser comunidade". E, em lugar de se viver com o nome que se recebeu, cada um pode batizar-se a si próprio.

Assim ocorre em todas as paragens que se encontrem sob a influência do mundo moderno: com os modernos meios de comunicação e de organização do poder, a metrópole não é somente a grande cidade, mas todo o lugar, mesmo que geograficamente isolado, que se encontre mediaticamente servido pelo Mercado e regulado pelo Estado. De facto, solidão por solidão, é ela igual entre betão ou entre rios e vales.

Claro que, em vista de uma maior liberdade e segurança, somente se agudiza a sensação de fragilidade. Separados todos os fios que constituem o tecido social, apenas se torna mais presente a condição de fragilidade de cada um dos fios deslassados.

Ainda fosse esse o maior problema. Doloroso é por esta via se amputar uma dimensão da vida que a pessoa humana está capacitada a experimentar. Nega-se-lhe, por essa amputação, a possibilidade de pertencer a um lugar, de experimentar a amizade, de poder fazer parte de um corpo que, sendo o seu, não se reduza à própria carne. E de, desde a experiência destas relações interpessoais de lealdade, de fidelidade, de confiança, poder experimentar o mundo, não já como uma fonte de assombrosos perigos a vencer pela via institucional, até ao objetivo de a pessoa ser capaz de, então, estar plenamente só diante de tudo e diante de todos, mas como uma casa que se habita desde uma rede presente de auxílio e amizade.


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