A Violência na Bíblia
Das muitas e muitas críticas dirigidas ao Cristianismo em geral, e aos cristãos em particular, uma das mais pertinentes, mas compreensivelmente reveladora de um enorme desconhecimento, é a que diz que “a Bíblia é muito violenta”.
Quando me dizem isto, e com a preocupação de chamar a atenção para a necessidade de algum rigor na linguagem, digo (meio a sério, muito a brincar) que “a Bíblia só é violenta se for atirada à cabeça de alguém” (algo que desaconselho vivamente). Mas entende-se que tal expressão deseja aduzir: “a Bíblia tem textos de grande violência”. Isto é absolutamente verdade. Todavia, até a verdade precisa de ser interpretada para ser conhecida. É o que tentarei fazer a seguir.
1 ► Numa primeira aproximação, podemos dizer que a Bíblia tem conteúdos violentos, pois nós, seres humanos, somos violentos de múltiplas e variadas feições, e a Bíblia é, e deseja ser, um espelho cru daquilo que nós somos, quer nas nossas grandezas, quer nas nossas debilidades. Claro que ela não é só isso, mas também é isso, dado que é o retrato de uma porção da temporalmente vasta história de amor entre, por um lado, Deus-Amor e, por outro lado, uma humanidade tão proclive a frustrar a (sua) verdade, dignidade e felicidade.
Este facto, inerente ao que nós somos, a Bíblia não quer, nem pode esconder, pois uma das primeiras formas de se encetar um verdadeiro caminho terapêutico é o de, com franqueza, se dar a conhecer ao padecente a sua enfermidade. Por outras palavras: tais conteúdos violentos estão na Bíblia, pois eu – o Alexandre Freire Duarte que está a escrever estas palavras – existo e estou ferido pelo egoísmo que me corrói diariamente e, também desde mim, consome os demais.
2 ► Num segundo momento, há que reter que a Bíblia é como um “plano sedimentar vertical” que, em vez de ocultar, evidencia, à plena luz do dia, os sedimentos textuais que formam os estratos redacionais que a compõem. Ler a Bíblia é, inapelavelmente, ter que ser um "estratigrafiasta" textual. Com uma diferença: se, regra comum, a estratigrafia geográfica apresenta os níveis mais antigos em planos inferiores e os mais recentes em planos superiores, isso não acontece com a Bíblia. Nesta, os textos mais antigos não são os primeiros, nem os mais recentes os últimos. Conhecer a ordem cronológica em que eles foram redigidos é, assim, fundamental.
Ao contrário de outros livros – de outras religiões ou não –, em que se retirou deles o que, a partir de certa altura, passou a ser indesejado, isso nunca ocorreu no decurso da elaboração dos diversos livros da Bíblia. Isto é, nunca se acedeu à tendência para se encobrir o que, tendo sido religiosa e socialmente valorizado a dado momento (resultado da permeabilidade cultural dos povos do Médio Oriente Antigo), o deixou de ser, em consequência de uma mais afinada sintonia com a imutável e perene comunicação amorosa de Deus.
O que se fez foi, isso sim e durante o período da elaboração dos livros bíblicos, elaborar novas leituras dos eventos retratados anteriormente que, depois, eram entretecidas nas precedentes. Leituras e entretecimentos esses que levaram a que se chegasse ao ponto de se ter ab-rogado convicções anteriores. “Anteriores”, sim, mas não na ordem de apresentação atual dos textos, mas de redação dos mesmos.
3 ► Num terceiro aspeto, repare-se, ainda e para explicar em parte o que acabou de ser referido (e o que ainda virá a ser dito), que a Bíblia não é o registo, letra a letra, de um ditado feito por Deus a alguns seres humanos que se limitaram a inscrever tal registo neste ou naquele suporte físico. De modo algum. Sendo Deus apenas Amor, os textos bíblicos são sempre o resultado de uma relação de amor apaixonado entre os co(m)-autores humanos (com as suas circunstâncias, conhecimentos e perceções da realidade) e tal Deus que os inspirava (mas não forçava).
Com o passar do tempo, e na linha de uma assimilação depurativa do que antes já havia sido escrito, os co(m)-autores humanos da Bíblia foram-se tornando mais sintonizados com o amor de Deus. De facto, eles foram-se habituando cada vez mais ao caráter só amoroso de um Deus que, em diversas ocasiões e por motivos pedagógicos, aceitou acomodar-Se a entendimentos que, em parte, O distorceram e crucificaram em perceções não totalmente ajustadas à Sua identidade e vontade.
No “momento central” daquela história de amor divino-humana, houve um ser humano que pôde ser plenamente transparente a Deus, e Este, sem deixar de ser Deus, fez-Se um de nós. Nesse momento, Deus disse-Se de um modo insuperável como sendo Amor e nada mais do que Amor; como sendo um Amor que, como é típico de todo o verdadeiro amor, ama mais ao amado do que a Si. Não obstante, até aí muita tinta correu debaixo dos “olhos”, por vezes tristes e chorosos, de Deus que, naquele “momento central”, pediu que tudo o que adviera antes (e depois) fosse lido apenas em chave do amor mais autêntico e exigente.
4 ► Num quarto momento, é de se vincar com firmeza que há uma diferença abismal entre textos violentos descritivos – que relatam eventos violentos (“x matou y”) – e textos violentos prescritivos – que ordenam violência numa sua qualquer manifestação (“mate-se z”). Os primeiros formam mais de 98% dos textos de cariz violento que se encontram na Bíblia, e, verdade seja dita, nunca foram ortodoxamente lidos como exemplares ou normativos para o comportamento dos crentes, antes esmagadoramente censurados, inclusive no próprio texto bíblico que os relata. Entre os restantes, quase todos, senão mesmo todos, foram cessados na sua valência e aplicabilidade (mas não, como expus, retirados da Bíblia).
Chegados aqui, seja-me permitido evocar uma das “provas do algodão” acerca da violência bíblica. Formularei tal “prova” através de uma questão: apesar de isso ser comum noutras religiões, será que existe alguma confissão judaica ou cristã que evoque os textos bíblicos para defender e decretar atos de violência? Não havendo – como creio, sinceramente, que não há (embora a proliferação de movimentos pseudocristãos me impeça de ser apodítico nesta minha afirmação) –, será que todos membros de tais confissões religiosas são “maus cristãos” e “maus judeus” (porventura por desconhecerem os seus textos sagrados)? Estou convicto de que, quanto a isto, todos estamos seguramente de acordo.
Termino com uma última e capital afirmação: em toda e qualquer forma de violência (inclusive a patente em textos religiosos) e de sofrimento provocado pela mesma, a primeira e principal vítima é sempre o Deus-Amor (tal como aduzi, de passagem e mais acima, quando evoquei as “distorções” e as “crucificações” que Ele aceitou padecer ao longo da redação da Bíblia para nunca Se impor). Isto não pretende, minimamente, minorar o sofrimento humano causado por tais realidades. Jamais. Deseja apenas salientar que Deus, com a Sua insuperável sensibilidade e cognição do real, nunca está do lado das causas do sofrimento e da violência, mas, como se vê sintomaticamente na Cruz, empaticamente ao lado de quem padece com tais realidades. Sempre.
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