Barcelos: A Festa das Cruzes
Barcelos: A Festa das Cruzes
Barcelos: A Festa das Cruzes
Barcelos: A Festa das Cruzes
Barcelos: A Festa das Cruzes
Barcelos: A Festa das Cruzes

Barcelos: A Festa das Cruzes

Por estes dias a cidade de Barcelos festeja uma das celebrações mais importantes do calendário religioso do norte de Portugal. Entre 1 e 3 de maio a “cidade do Galo” enche-se para comemorar a primeira grande romaria do ano, a Festa das Cruzes, cujas tradições remontam ao séc. XVI, à lenda de João Pires, o sapateiro.

Oito da manhã. Ouvem-se os primeiros estampidos dos foguetes a anunciar as alvoradas gaiteiras e a arruada de Zés Pereiras. No primeiro de maio, a Festa das Cruzes vivencia um dos momentos altos com epicentro no campo da feira e no templo do Bom Jesus da Cruz, a Batalha das Flores. Nesta peleja entre as freguesias do concelho de Barcelos, carros alegóricos, gigantones e um oceano de povo amontoa-se para assistir a uma “chuva” de bolbos, pétalas de flores, num misto de cor e música. Contudo, a manhã acorda calma, num silêncio apenas interrompido pelo troar dos foguetes.

Na igreja do Bom Jesus rezam-se as primeiras Avé-Marias. Lá fora, os peregrinos que realizam o Caminho Português de Santiago assistem ao bulício dos feirantes que, a esta hora, recomeçam a montar as barracas da festa, depois de uma noite longa de folia. Ciente da religiosidade do lugar, uma peregrina da Eslovénia, sexagenária, entra no cenóbio e oferece uma oração a todos os que ama. Desejava carimbar a sua credencial, mas não quis perturbar a solenidade do terço. Não lhe faltaria lugar para marcar a sua passagem pela cidade banhada pelo Cávado, cuja ponte, mandada construir por D. Pedro, conde de Barcelos, no séc. XIV, colocou definitivamente a cidade no mapa das peregrinações ao túmulo do Apóstolo Santiago, em detrimento da rota por Braga. Mais tarde, Barcelos ficaria para sempre marcada pela milagrosa lenda do Senhor do Galo.

Igreja do Bom Jesus da Cruz, inaugurada em 1710.

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Igreja do Bom Jesus da Cruz, inaugurada em 1710.

Julija, a peregrina de Liubliana (capital da Eslovénia), confessa que o Caminho Português é para ela o seu décimo quinto Caminho de Santiago. Começou em Lisboa, vinda de Huelva. Impressionante. Quis saber mais sobre a igreja do Bom Jesus da Cruz. Numa amena cavaqueira, sentados na esplanada da “Colonial”, paredes-meias com o sagrado lugar, a pequena e esguia, mas extraordinariamente bem conservada “nova-jovem” (como Julija se classifica) foi descobrindo mais sobre o património, mas, sobretudo, a lenda de João Pires o sapateiro. Contam as crónicas que, no início da centúria XV da nossa era, viviam em Barcelos duas figuras completamente antagónicas: João Pires, o referido artesão dos sapatos e um fidalgo, de seu nome Pedro Martins. Não morriam de amores um pelo outro, mas Pedro Martins suspirava por Luizinha, filha do mestre sapateiro. Por não ser correspondido por Luizinha, não raras vezes o fidalgo perseguia e injuriava a jovem. Numa dessas ocasiões, João Pires presenciou tamanho desrespeito, esbofeteando D. Pedro na esperança que este deixasse de importunar a sua filha (a peregrina nem pestanejava o olho, tal era a sua curiosidade quanto ao desfecho da história). 

A notícia espalhou-se e o nobre passou a ser alvo da risada alheia, pois as marcas das bofetadas teimavam em não desaparecer. Despeitado, engendrou pesada vingança contra o velho sapateiro.

Ponte Rio Cávado

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Ponte sobre o rio Cávado. Desde o terreiro do Museu Arqueológico/Paço dos Condes de Barcelos avista-se, ao sul, a freguesia de Barcelinhos. Atualmente, a travessia mandada construir por D. Pedro, no séc. XIV é conhecida como a “Ponte dos Peregrinos de Santiago”.

A história ganha novo contorno quando Luizinha encontra, junto à praia de Esposende, um estranho pedaço de madeira que seria proveniente de um navio que, vindo da Flandres, terá naufragado ali perto. Estranhamente, o madeiro exalava um perfume e um calor sobrenaturais. A rapariga terá levado o pedaço para casa e mostrado ao pai, que não fez caso, atirando o toro para a lareira. De repente, a habitação encheu-se de luz e no chão da casa apareceu, desenhada, uma cruz luminescente. O milagre espalhou-se rapidamente, mas não por bons motivos. Esperando a oportunidade certa para se vingar do sapateiro e da sua prole, D. Pedro acusou-os de bruxaria, instigando a população para que fossem queimados na fogueira. E como quem conta um conto aumenta um ponto, muitas versões divergem, sendo que a mais “romântica” refere que os dois foram arrastados para o campo da Feira a mando do fidalgo. Subitamente, a estranha cruz terá novamente surgido, desta feita na terra batida do recinto feiral para espanto de todos e temor de D. Pedro. Talvez com medo da ira de Deus, o nobre pediu perdão e jurou nunca mais importunar Luizinha e o seu pai. Perante tais promessas, as marcas das bofetadas desapareceram e todos continuaram a sua vida. E como uma boa lenda tem sempre um fundo de verdade, ainda hoje podemos contemplar a bela igreja do Bom Jesus da Cruz, ali junto ao campo da feira, de evocação ao milagre da Cruz luminosa (outros relatos falam de uma cruz negra), cuja construção inicial viria a ser substituída pelo atual templo, um projeto do virtuoso arquiteto barroco, João Antunes, de Lisboa, inaugurado em 1710.

tapete de flores em barcelos

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Tapete de flores “Barcelos, o Eixo do Caminho Português”, realizado pela Associação dos Alfombristas do Corpus Christi de Ponteares, no largo Dr. D. José Novais, junto ao posto de turismo e torre medieval/centro Interpretativo do Figurado de Barcelos.

Nos dias que leva a Festa das Cruzes vale a pena contemplar de forma demorada os impressionantes tapetes de flores que cobrem o chão dos altares daquele que é um dos mais importantes depositários da religiosidade minhota.

Bom caminho Julija!


Fotografia de capa | Alvorada gaiteira e arruada dos Zés-Pereiras na festa das Cruzes.


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