Este Cérebro que vos fala

Este Cérebro que vos fala

Hoje falaremos um pouco sobre este órgão total e englobante que é o nosso cérebro. O cérebro humano é um órgão extraordinário, ele conta a história da evolução da vida, uma vez que na sua estrutura física (cérebro) está inscrito o desenvolvimento do processo do fenómeno humano (relação mente-corpo-ambiente).

A evolução da estrutura cerebral desenvolve-se de trás para a frente. O seu percurso evolutivo fez-se como uma seta em direção ao futuro o que na escala evolutiva significa que se realiza do primitivo para o mais recente.

Anatomicamente partilhamos as estruturas mais arcaicas do cérebro com os répteis, tronco cerebral, bulbo raquidiano e por aí em diante, até que na evolução o cérebro foi ganhando graus de complexidade progressivamente maiores, passando pela substância cinzenta, o córtex cerebral, e as zonas frontais, estas as áreas mais recentes da sua estrutura. O cérebro evoluiu progressivamente das funções vitais e essenciais à sobrevivência, como o controlo da respiração e do batimento cardíaco, às mais complexas e executivas. Nele se processa a perceção, se desenvolve a aprendizagem, se armazena e estrutura a memória. No cérebro humano que somos nós, tudo se transforma numa grande e dinâmica síntese do processo vital que caracteriza esta “vida encarnada” e humanizada.

Este órgão fascina-nos, ele está geralmente associado à razão, mas nele, acontecem também as emoções, os sentimentos e os afetos, fenómenos decorrentes da dinâmica viva dos seus processos mentais e somatopsíquicos. No entanto, ofuscados pela grandiosidade da sua importância, recorrentemente esquecemo-nos de que o cérebro só é cérebro de corpo inteiro.

Ou seja, a dicotomia corpo-mente que tantos estragos fez ao longo da história da humanidade e da sua ciência, na realidade trata-se de uma divisão fictícia, pois na verdade o cérebro está em todo o corpo. Não existe cérebro humano tal como o conhecemos, sem corpo, sem relação, sem ambiente ou sem cultura.

Naturalmente inconcluso o cérebro humano necessita da relação com outro ser humano e da interação com mundo para se co-construir na completude possível. Como afirma Gaiarsa dois terços do cérebro humano servem a motricidade e a visão. O controlo dos movimentos oculares está presente e é funcionalmente atuante em quase toda a sua extensão e volume. Podemos dizer, por isso, que o cérebro humano "foi realizado" para apreender, imitar, criar e inovar. Daí a importância de um meio social envolvente relacional e saudável, assim como da qualidade da relação e dos estímulos que se lhe proporcionam.

Para o cérebro humano “tudo é alimento”. Trata-se de um cérebro que se descobre humano, torna-se pessoa e através dela se pressente autoconsciente. Sente, pensa e reflete sobre si, sobre a realidade e a situação que lhe é dada a viver.

Pensar o cérebro sem a sua habitação, o corpo, e seu lugar de vida, o mundo, é uma mera abstração. Cérebro é sempre inteiro e encarnado na totalidade psicossomática e biopsicossocial da humanidade. Cuidemos do “alimento”, a relação inter-humana, cuidemos também da centelha criativa e criadora, o Eros pulsante que nos habita, para que o cérebro em nós, o seja na relação que estabelecemos com ele, que se integre efetivamente como parte de um todo que é bem maior. Para que na pessoa que somos o possamos descobrir em nós, para que se crie e se acolha, para que se expresse na sua potencial humanidade.

Desse modo, o cérebro deixa de ser medida de cálculo, ou mero repositório de “ferramentas” a desenvolver num “ginásio cerebral” qualquer. Resultado do slogan da moda que por aí se vende como produto do “marketing cerebral” e da vida prêt-à-porter, pronto-a-vestir. O leitor que nos lê estará a dizer, que emaranhado de palavras, talvez, e isso se deve à tentativa do cérebro desta pessoa que vos fala de se unir e se fundir na totalidade unificadora mente-corpo. Algo que fomos separando e fragmentando, e como costumo dizer: não separe o homem aquilo que a vida uniu, numa adaptação clara da famosa expressão bíblica.

O cérebro é nosso principal órgão de adaptação ao aqui (corpo) e agora (presente). É tão extraordinário que ainda antes de ter visto a luz do dia já olha para dentro. De acordo com Gaiarsa a "luz interior" e "visão interior", precede a luz e visão exterior, veja-se o caso das imagens oníricas dos bebés recém-nascidos, imagos onde se vão construindo as suas representações mentais como resultado do meio e da relação em que estão envolvidos. Um meio que de início para o bebé ainda se apresenta pouco claro e preciso, mas já de uma enorme riqueza imagética.

Novamente Gaiarsa, psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro, refere que no caso dos adultos "olhamos para dentro" ou "imaginamos" usando os olhos como se estivéssemos a ver as nossas imagens fora de nós e de olhos abertos. Os movimentos oculares que fazemos durante o sonho (no qual as imagens visuais interiores são excecionalmente nítidas) são exatamente os mesmos como se estivéssemos a ver essas mesmas coisas no mundo exterior. E a história continua…

Assinado: este cérebro que vos fala, descoberto pessoa, residente na humanidade e habitante do mundo.

Sugestões de leitura |
Damásio, A. R. (1999). O sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Publicações Europa-América.
Gaiarsa, J. A. (2006). Meio século de psicoterapia verbal e corporal. Editora Ágora.
LeDoux, J. (2000). O cérebro emocional: as misteriosas estruturas da vida emocional. Editora Pergaminho.
Punset, E. (2020). A alma está no cérebro. Leya.

Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

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