Estranha forma de vida ou a ânsia de viver
Tudo é para ontem, vivemos a vertigem do desempenho padrão, onde a métrica do comportamento está conforme a moldura que nos é oferecida. Tudo tem moldes, qual revista Burda *1, qual quê! Vejamos, o modo de trabalhar, o modo de amar, o modo de diversão, de nos alegrarmos, e de sofrer. O modo de viver e o modo de morrer, está tudo encaixotado, tudo devidamente protocolado, conforme as convenções sociais que a atualidade exige. Ai de quem não se encaixa nesta cama de Procusto de medida única. Quem não cabe, ou se ajusta ou não entra nas medidas do reconhecimento.
Sociedade do desempenho, da transparência e do cansaço como vários autores nos apelidam. Desta forma tudo se esvai num mundo líquido onde o fluído e o moldável perderam progressivamente as suas reais virtudes.
Acontece que a vida humana é tudo menos padronizável dentro de uma configuração única, a não ser à custa da saúde e daquilo que cada um traz de singular dentro da pluralidade que é a própria Vida que o sustenta e anima.
O padrão sempre é entrópico, mais aliado da pulsão de morte do que da de vida. Uma vida viva, rica e espontânea que o gesto livre e criativo do humano saudável pede, no seu movimento dançável e dialogante inerente a tudo o que potencialmente cria, que renova e que transforma.
A vida do próprio, da pessoa por ela mesma, pede outro ritmo, outros moldes. Os seus. Conforme a sua singularidade, a sua individualidade, de acordo com a qualidade das suas relações humanas e sociais.
A vida está fora do molde único e repetível para todos, ela corre solta, sem amarras. Com limites, mas sem apertos – porque a minha liberdade começa quando começa a tua. A sua força é a amplitude do espaço existencial que se abre para que possamos viver em plenitude de vida, libertos do que nos oprime e amarra, sejam ideias, crenças, comportamentos ou políticas que se afastaram da vitalidade pulsante da vida na sua livre possibilidade de plenitude.
O molde dá-nos o falso conforto do definível, do já sabido, da segurança, da previsibilidade que a repetição traz. Não, não é um contrassenso, apesar do apelo à livre iniciativa, à criatividade empreendedora, estas só seguem e ganham possibilidade nas estritas regras e normas de uma sociedade cada vez mais burocrática — livres e criativos, mas claro, dentro do estabelecido. Cada vez é mais difícil encontrar lugar para se ser do jeito que se é.
A vida protocolada e na convenção do estabelecido faz-nos crer que que se pudermos controlar tudo o que acontece, que se estamos de acordo com o estabelecido, estaremos garantindo que nada de mal nos acontecerá, o destino será sempre o sucesso e a realização. Mas desse modo entramos num ciclo vicioso sem fim, de expectativa, de controle, de ansiedade e frustração. A vida não encaixa, porque a nossa vida verdadeiramente não se encaixa. Ela pede errância, procura, partilha, conversa. O destino é fazermos a nossa caixa, de preferência com rodas (risos).
Porque a vida é incontrolável e incerta, descobrimos recorrentemente que só sabemos lidar com uma situação quando esta acontece.
Esta crença do controlo, de otimização, de utilidade e eficácia tipo linha de produção programável faz parte da nossa cultura. Vivemos numa cultura que vê no controle uma forma de criar garantias para o desafio que é viver. De modo nenhum temos o controlo sobre tudo, muito menos sobre os outros. Pensar e agir desse modo é penhorar a liberdade própria, é adoecer-se e adoecer os outros.
Para que se estranhe este padrão encarreirado de modo de vida, mas que não se entranhe, para isso, de algum modo necessitamos de encontrar saídas e sentidos ao mesmo tempo únicos e singulares, assim como coletivos e plurais, e no respeito por todos.
A vida acontece naquilo que se gesta criativamente, naquilo que reflete a originalidade dos talentos únicos que se podem realizar numa construção relacional, afetiva e humana, realizada na dança que a convivência conjunta permite.
Porque a vida está noutro lugar que não o molde único e repetível. A Vida está no pulsar próprio e conjunto. Ela acontece sempre que se dá uma ressonância harmónica e amorosa em cada coração humano. Assim é possível dar cor à nossa ação. Dar gesto ao que nos move e dar voz à nossa canção. Quando cantamos a mesma canção, quando entramos na roda em que a vida é o centro, quando assim é, a magia acontece e como diz a letra da canção: “tudo pula e avança”.
*1 Revista de moldes de costura da década de 70 do século passado.
Sugestões de leitura |
• Han, B., C. (2014). A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio d’Água.
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