Mudanças e suas Andanças
Não somos as pessoas que já fomos. Todos os anos, grande parte do tecido do nosso corpo se renova.
A dança da vida prossegue dentro de nós e à nossa volta. Nada no universo permanece imóvel. E nós, seres humanos, também precisamos de acompanhar harmoniosamente as mudanças e andanças da vida. Diz-nos Heráclito, filósofo pré-socrático, que é preciso compreender a realidade transitória da vida, que a única coisa que não muda é a própria mudança, pois a essência da vida e do mundo humano reside na sua constituição mutável. Para os antigos sábios taoistas, nada permanece inalterado na vida, tudo é um processo de contínua transformação. Mais tarde Camões no seguimento de Heráclito afirmou em tom poético:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades”.
Tempo, vontade, o ser, a confiança, tudo é composto de mudança tomando novas qualidades como afirma o poeta luso. Viver e compreender esta realidade que se transforma, é poder seguir o ritmo próprio da vida e seguir o seu fluxo, uma vez que tudo aquilo que se fixa, cristaliza ou resiste para além do tempo próprio e cria entropia, originando estagnação e no limite doença.
Curiosamente coincidem em nós os dois opostos, constância e mudança. Para o ser humano doutro modo não seria possível, necessitamos de constância no sentido de uma identidade e de estabilidade na estrutura de personalidade, no entanto além de constância, também necessitamos de flexibilidade, para seguir no sentido do desenvolvimento do potencial humano que só se concretiza através de um movimento saudável.
No campo da Saúde, e pensando na dimensão mental, como afirma o psicólogo Rui Campos, professor na Universidade de Évora, “saúde mental é a possibilidade de nos podermos movimentar dentro de nós”, ou seja, trata-se de uma mobilidade e flexibilidade interna com consequências dentro e fora da pessoa. É precisamente este movimento interno que revela a riqueza da nossa interioridade, pois é algo que se expande e que se manifesta do interior para o exterior, possibilitando à pessoa a capacidade de adaptabilidade sem submissão a ambientes doentios e a relações lesivas da sua integridade.
No campo mental, saúde é a possibilidade de relativizar o sofrimento, de fazer o que for melhor, mas obedecendo ao princípio da realidade. Saúde mental é possuir curiosidade pelo novo, é viver em estado nascente, e também possuir uma certa capacidade de adaptação, mas sem resignação.
Faremos agora uma transposição do falamos para quotidianidade da vida e das relações interpessoais. Poucas são as pessoas que fazem mudanças preventivas, ou seja, aquelas das quais obterão enormes benefícios no futuro e cujos prejuízos no curto prazo são escassos ou inexistentes. Neste contexto é sempre bom lembrar que somos povoados por hábitos, e os hábitos quando se cristalizam criam bloqueio e resistência às mudanças e suas andanças.
Talvez o primeiro elemento a ser considerado seja exatamente este: não convém lutar contra o que em nós nos condiciona ou limita, o que não significa ficar no condicionalismo e na limitação, mas, acompanhando o pensamento de Viktor Frankl, é poder autotranscender-se experimentando valores (amizade, generosidade, entreajuda, etc.) e por essa via vivenciar outros possíveis sentidos para a vida.
Mudar o modo como pensamos acerca de algumas características que são nossas e que consideramos serem imutáveis pode ser difícil, mas por vezes é indispensável. As pessoas acomodam-se com ganhos menores e imediatos em vez de procurarem uma evolução efetiva. Algumas só abandonam essa “zona de desconforto” quando movidas por pressões externas, muitas vezes só com algum acontecimento de caráter dramático: algo ligado à sobrevivência física ou material.
O que podemos querer mudar em nós?
Coisas reversíveis e que nos incomodam.
Porque é tão difícil nos libertarmos do que nos incomoda?
Porque receamos o que está além do incómodo. Reconhecer o que nos incomoda não é tarefa fácil, mas é o primeiro passo para quem querer mudar.
Como defendia Carl Jung: “só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar".
Mudar exige estratégias. Precisamos de saber o porquê? O para quê, e o como? É tarefa exigente, mas é possível. E nesta senda de uma possível mudança, o podermo-nos conhecer é essencial. Conhecer o quê? As emoções, os sentimentos e afetos que controlamos e os que não controlamos. Prestar atenção ao que vivenciamos para nos darmos conta do que experimentamos, em suma aprimorar o conhecimento de si.
Procurar compreender como nos tornamos naquilo que somos, ou estamos sendo, com todo aquilo que somos. Mais do que nunca para mudar é necessário nos conhecermos, sendo que para nos conhecermos necessitamos dos outros, não existe autoconhecimento em stricto sensu. O conhecimento de si implica sempre conhecimento com e na relação com os outros.
Conhecer-se é poder olhar para todos os “tempos da vida”, passado, presente e futuro, mas quando o olhar fica preso lá atrás urge reinterpretar o passado. Reinterpretação que trará como consequência uma possibilidade de mudança, uma vez que esta acarreta a possibilidade de reconhecer os acontecimentos sem julga-los. Desse modo apresentam-se-nos outras chaves de interpretação, abrindo-se assim novas possibilidades de destino.
Todo o caminho que procura aquilo que em nós é, ou seja, o Ser, o Ser que é aquilo que estamos sendo, pois, Ser é dinâmico, e tem o seu percurso e os seus obstáculos. Neste sentido saibamos todos dos obstáculos fazer possibilidades e do encontro alternativas de mudança.
O que mudar?
É mais fácil ver no outro, mas só nós sabemos o que realmente precisamos de mudar, embora muitas vezes precisemos do olhar do outro quando nos acolhe para o reconhecermos.
Porque é tão difícil mudar?
Porque só podemos mudar o que é possível. Nestas andanças das mudanças convém não esquecer que este é um caminho único, individual e singular o que não quer dizer, desacompanhado e só, antes pelo contrário, mudar implicar colocar a “roda dos relacionamentos” em funcionamento e para que a roda gire, é necessário: dar, receber, pedir, recusar. Só assim é a vida gira, anda e avança.
A mudança implica-nos. E para que se concretize são necessários três atributos que se podem alcançar através de processos de desenvolvimento pessoal, ou através de uma relação de ajuda. São eles a consciência, a vontade e a ação. Tais atributos decorrem apenas e só de um processo de transformação e mudança pessoal que nunca se realiza isoladamente, mas em conjunto, seja na convivência com outros significativos e em relação autogénea, ou num processo de consulta psicológica ou psicoterapia. Ninguém muda sozinho, muda-se sempre na e pela Relação.
Não existem fórmulas, mas descobertas, experiências, vivências e aprendizagem. Como diz o ditado: “quando decorei todas as respostas da vida, mudaram todas as perguntas”. Mudar implica abertura às perguntas que cada instante nos coloca. Saibamos acolher o que vem e o que nos interroga.
Sugestões de leitura |
Bleger, J. (1973). Psicología de la conducta. Paidós.
Gikovate, F. (2014). Mudar: Caminhos para a transformação verdadeira. MG Editores.
Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
Ver também | A vida e os seus sentidos