
O Couto Misto: um país entre dois reinos
Por mais de 900 anos uma porção de território entre o norte de Portugal (Montalegre) e a Galiza (província de Ourense) viu os seus habitantes livres de impostos e de guerras, sem ter de prestar contas aos dois lados da raia. O Couto Mixto (em galego) foi um país entre dois reinos.
De 1147 a até 1864, um pequeno núcleo entre as terras de Montalegre e a atual província de Ourense sobreviveu aos mandos e desmandos dos reinos de Portugal e de Espanha. O Couto Mixto (em galego), ou Couto Misto (em português) foi um pequeno país, uma micro nação situada na fronteira entre Espanha e Portugal, cruzado pelos rios Salas e da Infesta.
Desenvolvido à laia dos dois reinos, desfrutava de diversos privilégios, como a isenção de imposto e da obrigatoriedade de dispensar homens para os exércitos dos dois reinos ibéricos.
Composto pelas localidades de Santiago de Rubiás, Rubiás (atual município de Calvos de Randín) e Meaus (hoje município de Baltar), todas ao norte da Serra do Larouco, na bacia intermediária do rio Salas, em Ourense, na Galiza.
O território do Couto Misto incluía também uma pequena área desabitada, que agora forma parte do município português de Montalegre.
Com uma extensão de 26,9 quilómetros quadrados, estima-se que, entre 1862 e 1864, a população não ultrapassava os mil habitantes, de acordo com os registos documentais do penúltimo juiz do Couto, Delfín Modesto Brandón.
Devido às intricadas, e nem sempre fáceis, relações senhoriais do período medievo, esta região permaneceu fora do jugo tanto português quanto dos primeiros reinos hispânicos (como o reino antigo da Galiza, Leão ou Castela e, após a unificação promovida por Isabel de Castela e Fernando de Aragão) por séculos, funcionando como uma verdadeira comunidade política independente até à assinatura do Tratado de Lisboa de 1864.
No documento que colocou um ponto final no Couto Misto, o tratado dividiu o território entre Espanha (a quem coube a maior parte, incluindo as três cidades) e Portugal (desta feita uma faixa menor de terra, porventura desabitada).
Os habitantes do Couto Misto desfrutavam de vários direitos e privilégios, assim lhes permitia o estatuto de nação independente que eram, na prática, como autogoverno, isenção do serviço militar e impostos e também o direito a deterem armas, a impressão de selos postais oficiais, a oportunidade de conceder asilo a fugitivos da justiça lusa ou espanhola, a refusão em albergar contingentes militares estrangeiros, direitos de passagem nas estradas, autonomia de comércio, liberdade de cultivo (como aconteceu com a folha do tabaco, introduzida na Europa por Jean Nicot, na altura embaixador francês em Portugal, em 1561) e, ainda, a regalia de escolher entre a nacionalidade espanhola ou portuguesa, entre outros.
As origens do Couto Misto remontam ao século X, conectadas com a história do castelo da Picoña (em Calvos de Randín, Galiza, que, a par de Tuy, foi uma das poucas fortalezas não portuguesas caracterizadas por Duarte de Armas na sua obra “Livro das Fortalezas”, de 1509) e mais tarde à Sereníssima Casa de Bragança, desde a independência de Portugal (por volta de 1147), quando os limites jurisdicionais com Leão ainda não estavam claramente definidos.
Grande parte do conhecimento sobre este território fronteiriço, as suas normas, usos e costumes, provém de relatórios diplomáticos elaborados durante as negociações do Tratado de Lisboa de 1864. Esta antiga situação, considerada anómala, foi unanimemente decidida tanto pela Espanha quanto por Portugal como insustentável, devido à propensão ao contrabando e à presença de quadrilhas criminosas na região.
Introduzir bens como sal, medicamentos, sabão, açúcar ou bacalhau para o interior do Couto Misto era uma prática corriqueira, e nenhuma autoridade tinha o poder de deter ou intercetar aqueles que realizavam a prática contrabandista, ao mesmo tempo que, sublinhe-se esta curiosidade, era frequente observar portugueses a realizar o Caminho do Privilégio (entre Tourém e Rubiás), calçando sapatos deteriorados pelo tempo e pela jorna, apenas para retornarem, posteriormente, com calçados novos.
Importa referir que o Couto não era um território sem “rei nem roque”. Essencialmente, esse micro estado operava como uma república, em que os chefes de família elegiam um governo por meio de votos, sendo o juiz a máxima autoridade. Competia ao juiz selecionar outros dois representantes em cada localidade, denominados "homes de acordos", sendo que três desses “homes” ficariam incumbidos de guardar uma chave da “Arca das Três Chaves”, onde se encontravam os documentos que outorgavam a independência do Couto Misto.
Importa assinalar que a liberdade que se permitia ao Couto Misto não encontrava aceitação unânime, resultando, por vezes, na violação das regras deste micro estado, tanto pelas autoridades espanholas, como pelas portuguesas. O direito de asilo nem sempre era respeitado, resultando em prisões de residentes do próprio Couto, e ocasionalmente, os mesmos habitantes não recusavam (por troca de favores) passagem ou hospedagem a forças militares de um dos países.
Talvez por essa razão, na segunda metade do séc. XIX o Couto Misto encontrou o seu fim. A partir da iniciativa de Isabel II da Espanha, o território foi objeto do Tratado de Lisboa em 1864, o qual definiu a linha fronteiriça entre os dois países, marcação essa que foi revista em duas ocasiões, em 1866 e em 1896.
Nos dias de hoje tanto os municípios ourensanos e de Montalegre procuram defender a memória do Couto Misto, tendo sido criada em 1998 a Associação Amigos de Couto Misto e, em 2003, a Associação Comunitária do Couto Misto (Asociación de Veciños do Couto Mixto). Todos os anos é eleito o “Juiz Honorário do Couto Misto”, distinção que, em 2009, foi atribuída ao Padre Fontes, em reconhecimento “pelo seu trabalho incansável de defesa e promoção da cultura galaico barrosã”, como refere a página do Ecomuseu do Barroso.
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