Os Segredos da Imagem "Degolada" de Nossa Senhora da Vitória
No interior da igreja de Nossa Senhora da Vitória, no Porto, encontra-se uma imagem escultórica pelo mestre António Soares dos Reis, que tem a particularidade de ter uma cabeça esculpida por um santeiro da Maia, colocada após a morte do seu autor original.
A cidade do Porto é uma teia de freguesias, cada uma delas caracterizada pela sua igreja e padroeiro (a). Uma das mais icónicas é a freguesia da Vitória, integrada, em 2013, na União das Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória, incorporação conhecida também como “União das Freguesias do Centro Histórico do Porto”.
É na freguesia da Vitória que se encontram algumas das mais importantes “landmarks” do Porto: a Torre e Igreja dos Clérigos, o edifício da antiga Cadeia da Relação (atualmente Centro Português de Fotografia), o Mosteiro de S. Bento da Vitória e a Igreja de Nossa Senhora da Vitória. É também nesta freguesia que podemos encontrar um dos melhores miradouros para o “casco” histórico: o miradouro da Bataria, toponímia que recorda a colocação, nesse local, de uma peça de artilharia pertencente às tropas de D. Pedro IV, apontada para Gaia, onde se encontravam as forças de D. Miguel, na sequência de um dos mais importantes episódios da Guerra Civil Portuguesa de 1832-1834, conhecido como o “Cerco do Porto”.
A história da freguesia da Vitória remonta às origens do próprio burgo portucalense, ganhando maior destaque quando a cidade cresce para além da “cerca velha”, a antiga muralha da cidade, que confinava o burgo ao reduto da Sé Catedral, no alto do morro de Penaventosa. Quando, em meados do séc. XIV, D. Afonso IV decide construir um novo pano amuralhado, a Vitória passa a ficar protegida por essa nova estrutura, concluída por volta do ano de 1370, já no reinado de D. Fernando (ainda hoje essa cintura é conhecida como a Muralha Fernandina).
É na Vitória que D. João I decide instalar a terceira judiaria do Porto (depois da comunidade judaica ter conhecido a “Judiaria Velha” e a “Judiaria de Monchique”, matérias já abordadas em anteriores crónicas, ver links abaixo), que ficou conhecida como a Judiaria Nova do Olival. Erguida entre as atuais ruas de S. Miguel e de S. Bento da Vitória, Rua e Travessa das Taipas, a judiaria contou com uma sinagoga que terá sido construída no lugar onde se encontra a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, construída após a dissolução da judiaria, no séc. XVI. E é precisamente este cenóbio que guarda uma enigmática história que alude à imagem da padroeira da freguesia da Vitória (topónimo que, segundo alguns historiadores, se encontra relacionada com a “vitória” dos cristãos sobre os judeus, apesar de outros investigadores defenderem que a origem do nome alude a escaramuças entre os exércitos de Cristo e contingentes mouros, com a vitória a cair para o lado das hostes cristãs).
A atual igreja de Nossa Senhora da Vitória é obra de um projeto lançado pelo bispo António de Sousa, datado de 1756, tendo sofrido, ao longo dos séculos obras de restauro, mercê de incêndios, mas também de danos provocados pelas baterias miguelistas, aquando do episódio já referido do cerco do Porto.
Fotografias de Artur Filipe dos Santos | Igreja de Nossa Senhora da Vitória, no Porto.
O atual templo é um misto de arquitetura barroca (onde se destaca o extraordinário retábulo da capela-mor, obra do entalhador Francisco Pereira Campanhã), maneirista e neoclássica, de nave única.
É na capela-mor que se encontra, justamente, a imagem escultórica que coroa o título desta crónica: encomendada, em 1874, ao mestre António Soares dos Reis, após um incêndio que destruiu a imagem original, a face da imagem de Nossa Senhora terá sido inspirada, segundo alguns autores, no rosto de uma vendedora de fruta da Rua de Camões, natural de Gaia, de seu nome Mariquinhas Castanheira, que terá servido, várias vezes, como modelo, tanto de Soares dos Reis como para outros artistas da cidade. E como a história não é uma ciência exata, há quem defenda que o rosto idealizado seria o da mãe do escultor.
Apesar da beleza da imagem e do prestígio que Soares dos Reis já granjeava naquela época, tanto a face da escultura de Nossa Senhora, como a do Menino, que a imagem carrega do braço esquerdo, não foram do agrado de todos os fiéis, chegando muitos a caracterizá-las como banais e “pouco divinas”. Mas, enquanto Soares dos Reis se manteve entre a terra dos vivos, ninguém ousou profanar a obra. Depois da morte do mestre (que se suicidou), em 1889, os detratores da imagem não tardaram em levar avante os intentos de tornar a escultura, nomeadamente o rosto da padroeira, mais “celestial”. Assim, a confraria, na qual a igreja paroquial estaria a cargo, terá encomendado a intervenção a um santeiro da Maia. O artífice maiato optou por criar uma nova cabeça, “degolando” da imagem a anterior. Segundo algumas fontes, terá também retocado as vestes desta representação mariana, cobrando, no final do trabalho, 40 tostões pelo serviço. Quando a verdade veio ao de cima, foram muitos os intelectuais e artistas da cidade que criticaram a confraria por tão grave crime de “lesa-arte”.
Ainda hoje se pode contemplar, no interior da igreja, no altar da capela-mor, a imagem de Nossa Senhora da Vitória, com o corpo desenhado por Soares dos Reis e a cabeça projetada pelo santeiro da Maia. Contudo, o rosto original da escultura ainda hoje se preserva e encontra-se nas mãos dos responsáveis da paróquia da Vitória.
Finalmente, fica a curiosidade: se desejar conhecer a imagem original de Soares dos Reis, com a face de Nossa Senhora tal e qual como o mestre a idealizou, basta deslocar-se ao Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, onde se encontra o modelo em gesso da escultura original produzida pelo artista. A peça, que chegou a integrar a coleção do pintor Manuel Maria Lúcio, foi doada (em conjunto com outra obra de Soares dos Reis, um barro intitulado 'Esboço para uma cariátide-candelabro" ao museu pelo próprio artista plástico gaiense, em 1943.
Descubra a história das Judiarias do Porto nas seguintes crónicas:
► As Judiarias da Cidade do Porto: 1º Capítulo
► As Judiarias de Monchique e Nova do Olival
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