
Sedentário até que a morte nos separe
Um dia… Um ano… Uma vida!
Dormi bem esta noite, às vezes sinto que não é tanto o número de horas dormidas, mas sim a qualidade, um verdadeiro sono profundo. Não acordei a cantar, também não exageremos… mas acordei de sorriso no rosto. Por entre as ramelas e o estore entreaberto vejo os primeiros raios de sol lá fora: "hoje temos bom tempo", murmuro num dialeto ainda impercetível. Acordei cheio de energia, mas porquê gastá-la? Vou poupar o máximo possível!
Sonho em acordar com um café, mas para já começo com um duche rápido, o imprescindível cotonete, desodorizante (sem álcool claro), um toque de perfume, cai sempre bem e, uma tentativa em vão de pentear para a esquerda. O cabelo saiu de uma rebeldia, incompreensível. Em dois minutos enfio-me numas calças e camisa ligeiramente amarrotada que condizem minimamente, sem desperdiçar tempo com meias, entro num par de sapatos sem cordões, é mais fácil, um truque que tenho aperfeiçoado para não ter que me abaixar, poupar no esforço é a chave do sucesso.
Gabo-me de não colocar açúcar no café, sou um ser superior, bebo um sumo (néctar, que de sumo tem pouco, mas estava em promoção), duas fatias de pão de forma (dá uma trabalheira comprar pão mais do que uma vez por mês), cobertas com duas embalagens individuais de compota (menos loiça para lavar) e está feita a refeição mais importante do dia. Já fiz tanto em tão pouco tempo, tenho de abrandar o ritmo, para compensar desço no elevador até sentar no meu carro, que, como já deve imaginar, é automático, colocar mudanças e usar embraiagem é uma canseira estúpida.
Abrem-se as portas do elevador, estou no escritório, preciso mesmo de me sentar e começar a exercitar os neurónios, músculos é que não, tenho mais de 600 no corpo mas vou deixá-los repousar e ganhar energia para algum momento muito importante que possa surgir num futuro que não se deseja próximo.
Sou um ótimo empregado, estou a produzir a um ritmo incrível, teclo intensamente… acho que abusei, agora tenho sede, que inconveniente. Fico à espreita e reparo que um colega está a circular no escritório, peço-lhe o favor de encher a minha garrafa, bem jogado, assim continuo sentado a produzir até ser hora de almoço e descer no elevador.
Há um restaurante ótimo do outro lado da rua, mas havendo um medíocre deste lado porque raio iria atravessar a rua gratuitamente?
Até me apetecia uma salada, mas o bitoque é o prato do dia, dizem que não tento comer melhor, mas eu tentei por 10 segundos, mas não havia condições, resigno-me ao sabor do frito e finalizo com um bolo de bolacha e um café, mas sem açúcar.
A tarde é exatamente igual à manhã, passou rápido, já estou a caminho do conforto do meu T2 remodelado e decorado de acordo com a melhor ideologia sueca.
Ao pensar que hoje não sairia mais, fui feliz por alguns minutos, não fossem as ideias loucas da família: "Vamos ao centro comercial". Nem queria acreditar no que estava a ouvir! Não há respeito, uma pessoa vem do trabalho acumulando uma forte dose de cansaço, apetecia-me dizer um palavrão, não fosse a presença de duas crianças.
Super contrariado de volta ao carro, viagem longa, andei às voltas 30 minutos e compensou, surgiu um lugar de estacionamento mesmo junto à escada rolante, começo a encarar a situação com um pouco mais de otimismo.
Ainda tive de andar três metros, mas felizmente a escada estava a funcionar! Duas vezes, ao deparar-me com uma escada rolante avariada, abortei os planos e regressei a casa. Deixo a família ir às suas compras e vou direto à zona da restauração, onde degusto uma cerveja e uns amendoins até regressar a casa.
Há aplicações maravilhosas, trazem-me um jantar de sonho em 30 minutos, janto no sofá de forma a não ir sequer à cozinha, podendo ver de seguida duas séries ótimas na "net fixe".
Levo uma cotovelada da esposa: "vai roncar para a cama, não estamos a conseguir ouvir". Arrasto-me para a cama. Ainda me passa pela cabeça lavar os dentes, mas porquê fazer hoje o que podes fazer amanhã?
Fotografia de capa | Anrita (1705)