
Socialmente Saudáveis
Somente dentro de uma sociedade em que se possa viver o diálogo entre as normas, os hábitos coletivos e o respeito pela liberdade pessoal no que concerne à autodeterminação é que se pode alcançar a saúde, no sentido de uma maturidade, afirma a psicanalista Danit Pondé. Falamos novamente de saúde psíquica, recordando que esta só existe por inteiro, ou seja, em todas as dimensões que compõem a saúde humana (bio-psico-socio-espiritual).
Quando seguimos no sentido da saúde percorremos um ciclo benigno e virtuoso – diferente de um ciclo vicioso –, pois, na saúde, as pessoas são capazes de adaptar-se ao mundo, não de uma forma passiva, pois preservam a criatividade pessoal que os orienta no sentido de uma contribuição recriadora desse mundo. É dizer, transformam-no, alteram-no. Não se resignam, não se conformam.
Adaptar surge aqui no sentido de mudar a partir da realidade dada, não necessariamente acomodar como ganhar a forma quando esta está distorcida, quando esta vai no sentido do desvio, ou quando está adoecida daquilo a chamamos dignidade humana.
Conforme afirma Danit Pondé, em contraste no ciclo vicioso a configuração-forma que mantém a imaturidade do comportamento humano expressa-se no aprisionamento infantilizado da condução da vida pelos outros, por ideologias ou por manuais de conduta circunscritos à opressão vigente em sociedades autoritárias, que prevalecem nesse estado de coisas com o intuito de se perpetuarem. E o que não faltam por aí são vendedores de liberdade cujo objetivo perverso é perpetuar a dependência, a imaturidade e a incapacidade de autoafirmação e consequente a possibilidade de emancipação das pessoas.
Na atualidade os sinais vermelhos que nos sinalizam o alerta de que estamos perante uma crescente alienação e perda progressiva de dignidade humana, reluzem com toda a exuberância, no entanto apesar disso, teimamos em não lhes prestar a devida atenção, não reconhecendo os seus pedidos.
Neste sentido, e face aos sinais e sintomas do adoecer da “alma humana”, urge recentrar a nossa compreensão e atuação, fundados numa teoria e prática que vise a saúde no seu sentido mais amplo e integrador.
A saúde deve ser um projeto coletivo, com o propósito de uma melhoria efetiva do bem-estar, da qualidade de vida e das possibilidades de participação e autodeterminação por parte das pessoas. É acima de tudo uma questão política na sua verdadeira aceção, porque é comum e dependente de todos.
Um discurso de promoção e prevenção em saúde tem necessariamente casar com a prática, e não continuar divorciado da realidade e das concretas necessidades humanas e sociais. Na atualidade paira um modo alienante de produção da subjetividade coletiva, ou seja, do modo de ser, pensar, atuar e sentir que tende à padronização, à normatividade de um conjunto de comportamentos danosos, porque automáticos e desviados das reais necessidades e aspirações humanas. Neste sentido é caso para dizer: “Deus nos livre de sermos normais”. Deus nos livre quando a normalidade, o mais comum e o generalizado, é ela própria desviante e patológica. Este padrão é apelidado por vários autores de patologia da normalidade, ou de normose.
Deste ponto de vista, e considerando a teoria do amadurecimento proposta pelo psicanalista Donald Winnicott, que em boa medida é uma “teoria da saúde”, pois procura descrever e identificar as bases do desenvolvimento saudável para, num momento seguinte, pensar na etiologia das perturbações psíquicas.
O foco é a saúde, só depois a doença, ou seja, tudo aquilo que se tornou desvio, bloqueio, paragem e sintoma é considerado num segundo plano. Uma vez que, como defende o nosso autor, ser saudável é poder ser, vir a ser e continuar sendo.
Fotografia | Leonardo Boff ► autor: Valter Campanato
Recordando Leonardo Boff, já citado noutros artigos:
Ser saudável: “é acolher a vida como ela se apresenta, alegre e trabalhosa, saudável e doentia”
Retomando a teoria do amadurecimento de Winnicott, ela leva-nos a concluir que quando o indivíduo pode contar com cuidados suficientemente bons, ele apresenta uma tendência natural à integração e à saúde, o que revela e evidencia a importância do ambiente, do campo psicológico, da ambientalidade para o desenvolvimento de uma vida humana maioritariamente sã.
Neste seguimento a dimensão social das emoções é das mais relevantes, isso nota-se na transmissão e dinâmica das emoções que se manifesta através do gesto, da linguagem e do contacto que estabelecemos com os outros e com o mundo. No contacto que estabelecemos connosco, com o mundo e com os outros vamos experimentando limites. A tensão entre o individual e o social, o indivíduo e o grupo estão sempre presentes.
As emoções mostram-nos como se vive esse processo de diferenciação e/ou reconhecimento de nós mesmos. Já afirmava Carl Jung: “o psiquismo é social, a consciência é individual”, uma vez que ao longo do nosso desenvolvimento individual temos que aprender a gerir e equilibrar a necessidade de nos nutrirmos emocional e afetivamente com a nossa necessidade de estabelecer contacto com os outros.
Primeiro temos de reconhecer essa necessidade em nós próprios, no nosso mundo interno. Depois teremos de ver como a gerimos externamente, na interação com o mundo e com os outros. Estas dinâmicas – interna e externa – representam a base do desenvolvimento psíquico da pessoa e revelam a importância da construção de uma sociedade socialmente saudável, só possível pelo cuidado primário e constante dos seus membros, garantindo-lhes liberdade para ser em tranquilidade e segurança para que a confiança e a esperança se possam consolidar como “chão” a partir do qual se sustentam e caminham.
Sugestões de leitura |
• Antoni, M., & Zentner, J. (2014). Las cuatro emociones básicas. Herder Editorial.
• Boff, L. (2017). Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Editora Vozes Limitada.
• Dias, E. O. (2021). A teoria do amadurecimento de DW Winnicott–4° Ed. DWWeditorial.
• Pondé, DZF. (2018). Emoções e sentimentos em Winnicott. (Tese doutoramento), UNICAMP.
• Weil, P., Leloup, J. Y., & Crema, R. (2017). Normose: a patologia da normalidade. Editora Vozes Limitada.
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.
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