Sul: Destino de Sonho
Após alguma liberdade natalícia, a fatura não tardou a chegar. Seja bem-vindo ao ano de 2021, mas parece que constam aqui algumas continhas do final de 2020 a acertar. “Portaram-se mal, abusaram do convívio familiar, agora vamos ter de confinar” ouvia-se o pivô do telejornal a anunciar com um certo tom de rispidez. Ao ouvir esse discurso assim de repente, aceita-se com alguma boa vontade, mas após 5 minutos, começo a ser invadido por uma sensação estranha. Eu que abdiquei de passar o Natal com a minha família, nem comprei presentes em grande parte para não ter de ir a centros comerciais, não tive nenhum convívio com amigos ou sequer fui comer a restaurantes, usei máscara 8 horas por dia, fiz do meu hall um vestiário, medi a temperatura corporal todos os dias, vou ter de pagar a fatura? Mas… eu nem sequer consumi nada… Quando a Graça Freitas dizia que Portugal não iria ter nenhum problema ou que usar máscara não fazia sentido, eu já usava máscara e não permitia qualquer tipo de proximidades, fui e sou um viciado em álcool gel, tomo dois banhos ao dia (e não por transpirar demasiado) e mesmo assim… Deve haver aqui algum engano… Sem grandes forças para reclamar só me resta aceitar, uma vez ovelha, para sempre ovelha, sem margem para ser original lá segui o rebanho.
Mesmo a usufruir do conforto doméstico é difícil ver imagens de 20 ambulâncias em espera à frente do hospital, apesar de não ter nenhum sentimento de culpa coloquei-me na pele daquelas pessoas, não havia como não me sentir triste. Voltei a acordar às 11 horas, a armei-me em "chef" de cozinha, retomei a tentativa de remodelação dos armários da cozinha, aí como o tempo passa devagar, chego a sonhar com o trabalho. Estarei a enlouquecer? Nunca imaginei que estas palavras sairiam da minha boca, estou irreconhecível! Com o "shutdown" veio o sedentarismo financeiro, acrescenta algo à depressão, a conta à ordem deixou de saber o que é subir, descer é a única e triste realidade. Mesmo nos momentos mais negros, a capacidade de sonhar não morreu, pelo contrário, fiz uma loucura… Olhei para o calendário, estudei os feriados, vi potencial no mês de junho e sem pensar no bem-estar financeiro fiz o impensável, através de uma plataforma online reservei uma semana de férias. Tal ato de loucura fez-me sentir feliz essa noite.
A Páscoa trouxe a mudança, voltei a queimar combustível (não que me sinta orgulhoso disso), assumi as rédeas da minha vida profissional, tal era a vontade que entreguei-me intensamente à profissão. Vivi o mês de abril e de maio no limite, voltei a ver subidas na carteira, mas à custa de poucas horas dormidas e do declínio de famílias inteiras de neurónios. Fui-me arrastando entre a dureza do dia-a-dia, os fins de semana já não eram suficientes, a família de forma reiterada reclamava a ausência emocional, o final de maio já foi vivido numa verdadeira contagem decrescente… até que chegou o dia, 5 de junho é o passaporte para uma vida alternativa.
Os planos iniciais são sempre perfeitos, já ter tudo preparado com a devida antecedência, acordar cedinho de forma a conseguir fazer render ao máximo o primeiro dia de férias. É claro que a realidade é bem diferente, começa pela necessidade de dormir mais um pouco, a lentidão catatónica com que se faz o primeiro café, seguido do pequeno-almoço degustado de forma lenta, é preciso colocar todo o lixo fora, recolher algumas roupas de última hora. De forma individual são pequenos afazeres é certo, mas quando somados, atrasam de forma significativa a partida, ou seja, quando saio porta fora já são 13 horas, em bom rigor metade do primeiro dia passou assim num ápice.
Rumo a sul, o GPS contabiliza 317 quilómetros estima 2h59 até à concretização do sonho, de Cascais à Vasco da Gama, apesar de não ser uma distância muito grande, os radares obrigam a quase uma hora. À medida que começo a embrenhar-me por terras Alentejanas o termómetro do carro sobe 3 graus, o vento já não se faz sentir tanto, já começa a cheirar a algo… primeiro uma zona de suiniculturas mas a natureza acaba por dominar o olfato.
Já passava das 16 horas quando o GPS anuncia com voz triunfante: “Chegou ao seu destino”, dou o primeiro passo fora do carro de forma desequilibrada, inspiro o Algarve, um comité de boas vindas surge de imediato em frente ao prédio, uma tia e sua sobrinha. Sem direito a Champanhe mas com muita simpatia e delicadeza apresentaram-me de forma orgulhosa ao seu T0, agora meu, mas só durante esta semana. Depois de umas breves explicações, fui surpreendido com um bónus: “como não temos nenhum cliente a seguir, no dia do "checkout" não precisam sair até às 12 horas (como estava enunciado nas regras), estejam à vontade para ficar até ao fim do dia se quiserem” anunciou a Tia, a sobrinha esboçou um sorriso, que se fazia notar por trás da máscara FFP2. Ótimo, acho que nunca tinha recebido um brinde destes, gostei claro, mas pôs-me logo a pensar… Será que a lista laranja (ou âmber, de forma chique) dos Britânicos tem alguma coisa a ver com isto?
Um prédio com mais de 40 anos que esconde dentro de si um bebé remodelado, acolhedor e confortável, sinto-me realmente de férias, uma vista descarada para a praia do Alvor obriga-me a tirar as fotografias da praxe. Com tanta agitação e emoção lembrei-me que me tinha esquecido de almoçar, coisa rara, resolvo com uma sandes rápida, de forma a atravessar a rua e penetrar na bela praia, eis quando… surge o primeiro banho de mar de 2021. Ocasião memorável, uma celebração com a natureza, algo fria é o pensamento inicial, mas passo a passo foi melhorando, o choque inicial transformou-se em agradável, tanto que esperei e desejei este preciso momento. Com um final de tarde solarengo e ameno, fui ficando ao sol, sem pressas até às 19 horas como é típico de férias. Depois do banho de mar chega o banho de realidade, preciso de ir ao supermercado, para além do almoço não quero também passar ao lado do jantar, nem cotonetes ou protetor solar tenho, ainda cheio de areia apresso-me, para rapidamente receber a primeira má notícia das férias, todos fecharam às 19 horas. Imagino que sejam regras de pandemia, em vez de deixar as pessoas irem fazer as suas compras de forma diluída, vamos mas é concentrar todos num curto espaço de tempo, faz todo o sentido, Graça.
Em jeito de desespero, meu amigo GPS o que podes fazer por mim? Não te preocupes diz-me ele, minimercado Montes de Alvor aberto até às 20 horas a uma módica distância de 3 quilómetros e duzentos metros. Dito e feito, há anos que não frequentava uma superfície de 20 m2, até foi um momento algo nostálgico, transportou-me para outros tempos… outra vida!
Ambiente familiar intergeracional (avó e neta), com sotaque da zona, importação de preços do norte da Europa, mas deu para desenrascar o básico, já tenho cotonetes mas continuo sem protetor solar. Um saco pequeno custou um saco grande, o jantar gourmet vai mesmo acontecer, sandes de atum e vinho tinto, reaprendi que as carcaças são papos-secos No momento final da compra, eu todo esperto e tecnológico passei o cartão por cima do ecrã do multibanco… o que fui fazer! “Moço tem de enfiar na máquina” Certo, peço desculpa pela ousadia.
Uma carcaça, ou melhor, um papo-seco com atum empurrado com um tinto de Setúbal tem outro encanto quando degustado no Algarve.
Um jantar ao pôr-do-sol marcou o encerramento do primeiro dia… Amanhã há mais!
Texto e Fotografia | Zé Carlos Brito