Lília Anseia Voltar a Sentir Paz no Coração
“Começaram a bombardear-nos, não sei se sobrevivemos, saiba que amo-te”
Alla, irmã de Lília Pavlenco
A 24 de fevereiro de 2022, 4 horas da manhã! Foi esta a mensagem que Lília recebeu da irmã Alla, que vive na Ucrânia, seguiram-se dias de insegurança e medo, estiveram incontactáveis durante mais de 20 dias. Ainda hoje se consegue ver esse sentimento de incerteza no olhar de Lília.
Lília Pavlenco, vive em Portugal há mais de 20 anos, tem duas irmãs, uma na Ucrânia, outra na Rússia, irmãs que se amam, mas que têm pontos de vista opostos sobre a invasão.
Antes de tudo, vamos conhecer mais sobre Lília Pavlenco: nasceu na Moldávia, viveu na Ucrânia, na Turquia e veio para Portugal em 2001 ao encontro do seu, à data, marido. Lília aderiu à nacionalidade portuguesa, “sou uma mistura”, diz sorrindo.
Nem tudo foi um mar de rosas! O primeiro impacto de Portugal não foi positivo, a chegada a Lisboa foi um choque: lixo pelo chão e pessoas de muitas nacionalidades, uma realidade diferente daquela que conhecia. O marido havia alugado um quarto, numa casa com três quartos, o casal ficava num dos quartos, os restantes estavam ocupados por nove homens, trabalhadores na construção civil. “Vivíamos no centro de Lisboa, na Morais Soares, todos os prédios eram velhos, com chão de madeira, cheio de pulgas, foi horrível. Eu chorava muito!”, confessa.
No terceiro dia em Portugal, Lília começa a frequentar um curso de língua portuguesa, na JRS Portugal – Serviço Jesuíta aos Refugiados, onde garante que recebeu um grande apoio, principalmente de Rosário Farmhouse, “ela na minha vida é como um anjo, ajudou-me no trabalho, no curso, em tudo”.
Cerca de um mês depois da sua chegada a Lisboa, Lília descobre que está grávida do seu primeiro filho, Alexandre, foi neste momento que decidiu aguentar, lutar por uma vida melhor, até ao nascimento do bebé, depois avaliaria o futuro. Quando consegue legalizar a criança descobre que está grávida do segundo filho, André, acabando por permanecer em Portugal.
Fotografias | Lília Pavlenco em várias atuações de dança.
Lília Pavlenco cursou dança e coreografia na universidade em Odessa, na Ucrânia, onde foi professora de dança e coreógrafa. Em Portugal, depois de alguns trabalhos em outras áreas, Lília conseguiu trabalho como professora de dança: “Tive sorte, fui vista pela diretora da CERCICA num programa sobre imigrantes de Leste na RTP 1, em 2001. Nessa altura, fui convidada a desenvolver um projeto de ‘dança terapia’ para pessoas com deficiência mental e física na instituição CERCICA. Rosa Neto, era na altura a diretora, esperou por mim um ano, porque estava grávida do meu filho Alexandre. Comecei a trabalhar na minha área de formação em 2002.”, Sublinha.
Seis anos depois, a vida de Lília sofre um revés: “aconteceu o acidente mais estúpido que se possa imaginar, fui atropelada por outro veículo enquando ajudava o pai dos meus filhos a estacionar”, explica. Depois de uma cirurgia aos joelhos, não voltou a dar aulas de dança. “Agora só danço em casa sozinha”, sublinha. “Quando sinto paz no coração. Já não me lembro quando tive esta sensação. Mas acredito que ainda volto a dançar”, acrescenta, recordando que a irmã Alla está na Ucrânia.
Lília Pavlenco passou pela Guerra Civil da Transnístria, nos anos 90, foi para a Ucrânia com cerca de 20 anos sentindo, ainda hoje, uma “revolta” por ter sido praticamente obrigada a sair do seu país.
Cerca de 30 anos depois, "a história repete-se, mas em grande escala," salienta, a Ucrânia é invadida pela Rússia!
Ao longo de cerca de 11 meses, conversei com Lília em diversas alturas do ano, acompanhando a evolução da vida da sua família, que se encontra na Ucrânia, em território ocupado pela Rússia.
Um mês e 20 dias depois da invasão à Ucrânia... 13 de abril 2022
Tem falado com a sua irmã nos últimos dias?
Neste momento tenho falado mais vezes, mas no início de Abril estava há 23 dias sem saber nada dela, sem Internet, sem comunicações, nenhuma notícia, foi difícil.
Como está a situação na Ucrânia?
A situação está horrível, muitos bombardeamentos, aviões militares russos sobrevoam a cada cinco minutos. Não têm alimentação, nem água. Há vários casos de cólera, porque começa a ficar calor.
Ninguém limpa os corpos, muito lixo, o cheiro na cidade é insuportável.
Que sentimentos é que a Alla transmite?
Chora muito, depois de ver e ouvir este terror, com certeza terá de consultar um psicólogo para trabalhar e estabilizar o seu estado emocional.
Têm alimentos e água?
A Alla, o marido e o filho, conseguiram sair do centro de Mariupol, foram para uma aldeia a cerca de 10 quilómetros, mas o território foi ocupado pelos russos. Nessa zona ainda há alguma alimentação à venda, a preços muito altos. Também têm apoio humanitário.
A sua família quer sair da Ucrânia?
Sim, eles querem sair, porque não veem futuro e já não têm nada: casa, carro, emprego. Mas, neste momento não podem sair do país. Por várias razões, principalmente porque têm dificuldades com falta de dinheiro e com as fronteiras, só podem ir para o lado da Rússia, se fossem para o lado da Ucrânia, os homens são convocados para a guerra.
Tem outra irmã, que vive na Rússia, qual é a visão dela sobre a invasão à Ucrânia?
Ela tem conhecimento do que se está a passar na Ucrânia, na cidade da nossa irmã Alla, mas argumenta que isto tinha de acontecer, porque se a Rússia não atacasse a Ucrânia atacaria, ainda acrescenta que na Ucrânia há muitos nazis. Os Russos têm acesso às mesmas imagens do que nós, as que passam nas televisões, mas a informação é dada com outro sentido: Ucrânia (nazis) é que está a bombardear e a Rússia manda mísseis só para as bases militares. Transmitem à população que nenhuma casa civil foi atingida por mísseis russos.
Fotografias | A Casa de Alla, Ivan e Maxim. À esquerda: antes da invasão Russa. À direita: depois da invasão Russa e da chamada "operação de salvação".
Seis meses depois da invasão à Ucrânia... Agosto 2022
Como estão Alla, Ivan e Maxim neste momento?
Querem sair da Ucrânia porque não veem futuro no país. Contudo, têm um prazo para comprovar que tinham a casa e o carro, entregar vários documentos, passar por um longo processo burocrático na transição do novo país - República Popular de Donetsk.
Por outro lado não podem ir para território da Ucrânia porque os homens são obrigados a ir para a tropa. Existe a opção de sair para a Rússia, mas tem um custo monetário muito elevado e este dinheiro eles não têm. Estão entre a espada e a parede! Não conseguem sair para um lado, nem para o outro e a vida lá está “pendurada”. Não sabem se no futuro vai existir algum apoio para ajudar a reconstruir a casa, mas pelo menos têm de reclamar os seus bens, na esperança de não perderem tudo.
Como sobrevivem?
Vivem na casa de amigos, juntamente com mais duas famílias, numa pequena aldeia, Melekino. O marido da minha irmã conseguiu arranjar um trabalho, não ganha muito, mas dá para ir comprando comida.
Fotografias | Família de Lília Pavlenco.
Oito meses depois da invasão... Outubro de 2022
Como está a situação da família na Ucrânia?
O meu afilhado conseguiu sair do país antes do referendo, que foi uma fachada. Saiu de Mariupol através da Rússia e agora está a salvo, num país da Europa. A minha irmã também quer sair, mas só depois de conseguir entregar todos os documentos necessários da relação dos bens.
E a família que está na Rússia, já mudou de opinião?
Na Rússia, começam a ficar com medo porque podem ser chamados para a guerra, preferem ir presos, mas o risco de vida é elevado nas duas hipóteses.
Um ano depois da invasão à Ucrânia... 24 de fevereiro 2023
A Alla e o marido já conseguiram sair para outro país?
A minha irmã continua em Mariupol, na pequena aldeia, por várias questões: a sogra, o registo dos bens perdidos, que está a demorar muito tempo a resolver, a burocracia é bastante complicada e com regras que não são admissíveis.
Nesta fase, a irmã que vive na Rússia com que olhos vê esta invasão?
Simplesmente deixou de comunicar comigo, comunica com a Alla, que está na Ucrânia, mas as conversas acabam sempre em discussão. Não é possível mudar mentalidades, ela ainda está a culpar a Ucrânia pela mobilização na Rússia, porque tem o filho que deverá ser chamado para a guerra.
Um ano, uma família, um exemplo, entre muitos outros, de vidas paradas no tempo à espera de soluções! Continuarei a acompanhar a história da Alla, do Ivan e do Maxim, através da Lília Pavlenco, que anseia voltar a sentir paz no coração para dançar!
Em atualização...
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