Cultura Judaica e o Legado de um Povo
Antissemitismo ressurge em força na Europa e no Mundo
Numa diáspora que os fez espalharem-se pelo mundo, os judeus construíram, ao longo dos séculos, uma imagem bipolar. Considerados os culpados pela morte de Cristo e das mais variadas maleitas que assolaram o passo da civilização, vítimas de perseguição e tentativa de extermínio, a verdadeira realidade é que os judeus ofereceram ao mundo um legado cultural inegável, personificado em grandes personalidades como Einstein, Freud ou Kafka, construindo uma herança riquíssima, que só agora aprendemos a descobrir.
Fotografia | Menorah exposto na sinagoga de Trancoso
Quando falamos em cultura judaica, vem-nos desde logo à cabeça palavras como kippa (pequeno chapéu utilizado pelos homens em símbolo de respeito a Deus), menorah (candelabro de 7 braços utilizado nas principais celebrações judaicas e que representa a aliança de Moisés com Deus e a luz da Torá, um dos livros sagrados do judaísmo), a estrela de David (considerado o primeiro rei de Israel) ou ainda o Bar Mitzvá (cerimónia de iniciação do jovem judeu na vida adulta) e o Hanukkah (conhecida como a “festa das luzes”, é a grande festa da família e tem como objetivo, atualmente, festejar a restauração da soberania judaica em Israel).
Viajando pela memória de um povo que nasce entre a confluência de dois grandes rios da Antiguidade, o Tigre e o Eufrates (região a que ainda apelidamos de Crescente Fértil), o povo judeu (ou hebreu, originalmente), sempre se viu com a necessidade de “andar com a casa às costas”, mercê dos conflitos que foram assistindo ao longo dos séculos e que os fez primeiramente viajar, conduzidos pelo patriarca Abraão (considerado o “pai” das três religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também conhecidas como religiões abraâmicas) até à terra prometida de Canaã, entre os vales do rio Jordão e a costa mediterrânica, depois até às ricas planícies do Nilo e novamente de volta a Israel, desta feita pela mão de Moisés, a que se seguiu o cárcere da Babilónia, o regresso a Judá e daí para o mundo, numa diáspora provocada pelo conflito com o império romano.
O povo judeu, nascido da construção de um credo de adoração em um só Deus, não fundou apenas a primeira religião monoteísta mas gerou sobretudo uma cultura ortopraxia, através da criação de preceitos de conduta ética que vão muito para além da própria fé, como se demonstra na tradição Kosher, alimentação que segue as regras descritas na Torá (um dos três documentos, que a par da Bíblia Hebraica, do Talmude e da Cabala, formam o conjunto dos livros sagrados do judaísmo rabínico) mas também o cuidado em seguir regras de higiene e de nutrição, que procuram manter a saúde do corpo.
Mas não é só na visão da fé ou dos preceitos éticos que podemos encontrar tanto semelhanças como diferenças entre o judaísmo e, por exemplo, o cristianismo. Se é verdade que o Cristianismo nasce como um grupo messiânico no meio do judaísmo professado pelo Templo de Israel, certo é que a grande maioria dos judeus praticantes não se revém na figura salvadora de Jesus. Se os cristãos sentem uma necessidade de evangelizar e de criar ícones que ajudam os seus crentes a recordar as grandes personalidades bíblicas e históricas da Igreja, já os judeus defendem uma religião comunitária, em que apenas o filho ou a filha de uma judia pode ser considerado membro da fé judaica e não sentem qualquer necessidade em esculpir imagens em memória e muito menos em adoração a figuras do passado.
Fotografia | Estátua do célebre Gonçalo Annes Bandarra. As suas trovas influenciaram o pensamento sebastianista e messiânico de figuras como Padre António Vieira ou Fernando Pessoa.
Contudo, vale a pena recordar que o passado hebraico se encontra intimamente conectado com a própria cronologia da história não só do cristianismo como de toda a sociedade ocidental, tanto no ponto de vista da criação dos dogmas em que a igreja se ergue, acreditando na figura dos patriarcas hebraicos como fundadores do próprio cristianismo e a importância dos profetas, como Moisés, Isaías e tantos outros, figuras que serviram como pronuncio da vinda de um salvador, personificado na imagem de Cristo crucificado, mas também na intervenção na vida social, económica e cultural, através de nomes no decurso da História como Pedro Nunes, Bandarra (o poeta “profeta” de Trancoso) Amato Lusitano, Abraão Zacuto no caso particular de Portugal, ou Benjamim de Tudela, Spinoza e, mais recentemente, Marx, Freud, Einstein e tantos outros.
Ainda quanto ao papel dos judeus na construção da cultura ocidental, a sua relação com o mundo helenístico e depois com o império romano foram fundamentais para a construção de uma visão unificadora da atual cultura europeia, representada na criação de duas comunidades distintas no seio do mundo judaico: a comunidade sefardita dos judeus que alcançaram a Península Ibérica e a comunidade asquenazim, conhecidos como os judeus do leste europeu e que, juntas, representam o melhor da Europa mas também nos fazem recordar os períodos mais negros vividos no velho continente.
Neste tempo, Portugal e Espanha ainda sentem o peso da história sefardita, gerando a necessidade de perpetuação dessa mesma relação, ao promover uma rede de judiarias e de espaços de memória coletiva como são exemplo os museus judaicos e do holocausto do Porto (aberto em 2015 e 2020 respetivamente) ou o Museu Sefardi de Granada, e, com enfoque particular no nosso país, as rotas pelas cidades e vilas que outrora contaram com uma forte comunidade judaica como Almeida, Sortelha, Trancoso ou Belmonte. Um esforço em preservar a memória sefardita como demonstração do seu contributo para os grandes feitos dos reinos ibéricos (com relevante destaque para as descobertas marítimas), mas servindo também como redenção por séculos de perseguição (os judeus foram acusados de usura, de serem os causadores da peste negra, de conspiração, entre tantas outras ignomínias), antítese à visão personificada pela cidade de Córdova ou mesmo de Lisboa, que durante séculos foram conhecidas como as cidades das “Três Culturas”, onde o cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo souberam conviver harmoniosamente.
A 5 de setembro celebra-se o Dia Europeu da Cultura Judaica. Vale a pena celebrá-lo com entusiasmo, na procura em saber mais sobre uma visão cultural e de vida que não é assim tão exótica para nós, já que grande parte da nossa histórica é escrita também em língua hebraica, mas vale também como esforço de contenção, de barragem contra a maré da intolerância, sobretudo num período em que o antissemitismo ressurge em força no centro e leste da Europa, tão assolado que foi pelos horrores da II Guerra Mundial e que agora parecem esquecidos ou negados.
Texto e Fotografias | Artur Filipe dos Santos
Fotografia de capa | Richard van Liessum