Pontevedra: A mítica cidade da Virgem Peregrina
É uma das cidades mais emblemáticas não só do Caminho Português, mas de toda a Galiza. Pontevedra vive, desde o séc XVII, o paradigma de venerar as duas padroeiras fundamentais das rotas jacobeias: a Virgem do Caminho e a Virgem Peregrina.
Um passeio ao fim da tarde pelas margens do rio Lérez (curso que nasce na serra de San Bieito, no interior da Galiza, a 900 metros de altitude e percorre 59 km até à foz, na ria de Pontevedra) é um bálsamo para qualquer peregrino que tenha percorrido os 18 km desde Redondela até à capital da província. Parar junto à medieval Ponte do Burgo, construída no séc. XII em substituição da antiga travessia romana, e contemplar o casario da cidade que ganha tons amarelados e castanhos à medida que a tarde vai tomando conta do dia.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Ponte do Burgo Pontevedra.
Não será de estranhar a origem lendária daquela que, apesar de não ser a cidade mais rica ou populosa da região (essa distinção encontra-se nas mãos de Vigo), conserva uma história e um património que a destaca como uma das urbes mais importantes de Espanha.
Nas brumas da antiguidade, ter-se-á entrelaçado o texto épico de Homero, a “Ilíada” com o nascimento da cidade de Pontevedra. Conta-se que Teucro, um dos heróis ilustres da Guerra de Troia, terá sido o mítico edificador deste lugar. Após ser rejeitado pelo seu pai, Telamón (um dos argonautas de Jasão, na sua procura pelo Velo de Ouro), Teucro partiu em busca de novas terras onde pudesse fundar uma nova metrópole. Desembarcando na costa galega, Teucro encontrou um terreno fértil e inspirador. Ali, segundo a lenda, fundou um povoado ao qual deu o nome de Helenos, em honra à sua herança grega. Outra versão desta história acrescenta ainda um toque de místico e romântico à narrativa. Conta-se que Teucro foi guiado até ao lugar onde hoje se encontra Pontevedra por uma sereia, de seu nome Leucoiña. De beleza etérea e cânticos hipnotizantes, terá conduzido Teucro através das águas, assegurando-lhe um porto seguro e um local propício para estabelecer a nova cidade. E como as lendas têm sempre um fundo de verdade, ainda hoje encontramos várias referências a este herói mítico e a sua relação ilustre com Pontevedra: na memória toponímica presente na Praça do Teucro; no alto do edifício da antiga Caixa Económica Provincial, na Praça de S. José, uma estátua evocativa de Teucro, com o arco que lhe granjeou fama na guerra de Troia; e, ainda, na fachada do edifício do ayuntamiento, uma inscrição referente à fundação da cidade por esta personagem. Até na magnífica basílica de Santa Maria Mayor (fundada no séc. XVI, uma das grandes obras do gótico plataresco espanhol) encontramos uma estátua desta figura pagã.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Capela da Virxe Peregrina.
Embrenhando-nos pelas ruelas da cidade velha, encontramos a comunidade das Doroteias (agora transformada em santuário) onde, durante alguns anos, viveu a Irmã Lúcia, vidente de Fátima e, que nesta cidade galega terá avistado nova aparição de Nossa Senhora.
Ao chegar à Rua (e é mesmo “rua” e não “calle”, como podemos atestar nas placas toponímicas, à boa maneira de preservar o galego) Isabel II escolhemos se viramos à direita para a Basílica de Santa Maria Mayor (famosa pela sua fachada, altares barrocos e pela nave central em cruzaria), se vamos em frente para descobrir o mais antigo edifício civil de Pontevedra, a Casa das Campás, ou, se invés, regressamos à mítica praça onde o Caminho nos levou quando alcançamos Pontevedra, a que guarda a única capela do mundo em forma de concha de vieira: a Capela de Nosa Señora do Refuxio a Divina Peregrina ou, simplesmente, capela da Virxen Peregrina.
Até ao séc. XVII Pontevedra prestava culto à Virgem do Caminho, com confraria própria, criada em 1753, aludindo a uma lenda que falava da peregrinação da Mãe de Jesus ao túmulo de Santiago, desde a antiga cidade de Éfeso, na atual Turquia até ao lugar onde nasceria Compostela. Já a devoção à Virgem Peregrina terá nascido no seio de peregrinos franceses que buscavam a cidade do Apóstolo desde Baiona. Um desses grupos diz-se que portavam consigo a imagem original da Virgem Peregrina para Pontevedra.
Quando essa iconografia mariana chegou à cidade, optou-se por criar uma nova irmandade, com a imagem e a recém-criada fraternidade a estabelecerem-se na antiga (e já desaparecida) igreja da Virgem do Caminho, tutelada pela confraria com o mesmo nome, com as duas evocações a celebrarem-se no mesmo dia: 8 de dezembro.
Foi sol de pouca dura a sã convivência entre as duas confrarias. À medida que a devoção à Virgem Peregrina foi crescendo na cidade, estalou o conflito, onde até o toque dos sinos era motivos de discórdia, num diferendo apenas resolvido na barra dos tribunais e junto das autoridades, tanto eclesiásticas (envolvendo até a comunidade religiosa da Igreja de la Virgen del Camino de Sahagun, no Caminho Francês) como autárquicas. Resultado: as datas de celebração das evocações mudam, a da Virgem do Caminho passa a ser festejada a 21 de novembro (dia em que se celebra a festividade litúrgica da Apresentação da Virgem); a da Peregrina, primeiramente, a 8 de dezembro e, mais tarde, por causa do tempo incerto que a Galiza vive o último mês do ano, deslocando-se para o segundo domingo de agosto, data que ainda hoje mantém. Mas a questiúncula não fica por aqui, de tal maneira que a imagem da Virgem Peregrina acaba por ser apeada do seu altar na Igreja da Virgem do Caminho. Sem lugar para onde ir, a Confraria da Peregrina solicita à Câmara a cedência de um solar junto a uma porta da antiga muralha de Pontevedra, a Porta de Trabancas. Junto aos terrenos desse solar foi erguida uma capela em madeira para guardar a imagem da Divina Peregrina e seria nesse lugar, que, a partir de 1778, se ergueria a atual capela, finalizada em 1792.
Mas não se pense que a malapata da iconografia da Peregrina findaria com a inauguração do novo templo. Em 1795, uma enorme tempestade provocou avultados danos ao templo, cuja reforma só chegaria a bom porto em 1873. Mesmo a imagem não escapou à violência do clima e do tempo, apresentando preocupantes marcas de degradação. Aproveitando a estadia em Pontevedra, a Confraria da Peregrina logrou convencer Luis Vermell y Busquets – um notável escultor catalão que, durante alguns anos viveu em Portugal, tendo exercido funções de pintor e escultor junto da corte do rei consorte D. Fernando, marido de D. Maria II – a levar a cabo uma extensa operação de restauro da representação.
Quis o destino que o culto à Nosa Senora do Refuxio a Divina Peregrina se mantivesse até aos dias de hoje como a padroeira da cidade e da província de Pontevedra e de enorme veneração entre os peregrinos de Santiago, ao passo que a devoção à Virgem do Camiño esmoreceu, com a imagem a cruzar o Lérez, afastando-se irremediavelmente do centro histórico e dos corações dos pontevedreses.
Importa destacar desta notável construção barroca e neoclássica as esculturas presentes na fachada do templo, com a imagem da Peregrina ao centro, ladeada por Santiago e São Roque.
Na próxima crónica dedicada ao Caminho Português de Santiago vamos conhecer o papagaio mais famoso do mundo.
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