Caretos da Misarela: O Ritual Ancestral que Une Tradição e Misticismo

Caretos da Misarela: O Ritual Ancestral que Une Tradição e Misticismo

Um Entrudo Ritual da Passagem entre Mundos...

Nas profundezas escarpadas de Frades, Montalegre, ergue-se, na paisagem severa do Barroso, a enigmática Ponte da Misarela, que, nos últimos anos, viu renascer a tradição dos Caretos, que faziam desta travessia um ritual viajante entre estações e eras.

A ponte da Misarela, uma estrutura medieval (reconstruída no séc. XIX) desafia o tempo e as vertigens. Suspensa a mais de 15 metros sobre o rio Rabagão, é conhecida como a "Ponte do Diabo". Cenário de incontáveis urdiduras que entrelaçam o sagrado e o profano, o místico e o terreno, desde tempos imemoriais foi palco de ritos de passagem da adolescência para a vida adulta, do gélido inverno para o tempo da primavera, numa dança interminável pelas estações do ano.

Paradeiro de lendas que há muito caíram no esquecimento, uma ainda subsiste na memória dos locais, a que conta que um fugitivo, encurralado pelas autoridades, fez um pacto com o Diabo para que este lhe construísse uma passagem sobre o abismo, garantindo-lhe a fuga em troca da sua alma. Mais tarde, arrependido por ter selado tal danoso contrato, procurou um frade que, com astúcia e os dons da fé, conseguiu enganar o Demónio, benzendo a ponte e libertando a alma do penitente. Desde então, a ponte da Misarela e o seu abismo tornaram-se símbolo de rituais de fertilidade: mulheres desejosas de conceber pernoitavam sob a ponte, aguardando que o primeiro transeunte matinal batizasse simbolicamente o ventre estéril, numa cerimónia carregada de superstição e esperança.

Nos últimos anos, este local tem sido palco de uma revitalização cultural ímpar: o Entrudo da Misarela. Este projeto sociocultural visa unir as margens do Rabagão, celebrando a entrada da primavera através dos rituais ancestrais ligados aos festins solares do Noroeste peninsular. Os Caretos da Misarela, figuras envergando peles, máscaras de velhacos e animais, trajes berrantes e de cajado na mão, dançam e uivam, evocando antigos cultos de fertilidade e renovação. Estas festividades não só resgatam tradições quase esquecidas, mas também reforçam a identidade comunitária, ligando passado e presente numa celebração que tarda em se fixar.

O Entrudo da Misarela insere-se numa tradição mais ampla da máscara ibérica, cujas raízes remontam a tempos pré-cristãos. Os caretos, figuras incontornáveis deste imaginário, emergem nas festividades de inverno, como representantes do caos e do renascimento da natureza. O paralelismo com os Caretos de Podence, reconhecidos, em 2019, como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é evidente: as máscaras, o caos protagonizado pela dança frenética aponta, para uma ligação profunda entre os rituais de Misarela e outras manifestações da máscara ibérica num território que viu no seu isolamento uma oportunidade para conservar estas particularidades culturais e religiosas. Em Lazarim, os mascarados de madeira esculpida saem à rua em rituais de purificação e sátira social. Em Ousilhão, os caretos surgem não no Entrudo, mas na Festa dos Rapazes, a 26 de dezembro, por ocasião das celebrações de Santo Estêvão, em mais uma manifestação do espírito de transição da irreverência da tenra idade para as obrigações impostas pela maturidade .

Mas a ponte da Misarela não é apenas um elemento físico que liga as duas margens do impaciente Rabagão. Simbolicamente, as pontes são elementos universais de transição, evocando o limiar entre dois estados: da terra para o céu, da vida para a morte, da ignorância para o conhecimento. São espaços de passagem, de transformação e, frequentemente, de provação. Em muitas culturas, atravessar uma ponte significa superar desafios, enfrentar o desconhecido e, por vezes, conquistar a redenção.

A tradição da Misarela encontra paralelo noutras pontes lendárias um pouco por esse Velho Continente. A Ponte do Diabo em Céret, no sul de França, partilha a mesma narrativa: construída com a ajuda demoníaca, mas redimida pelo poder do sagrado cristão. Em Itália, a Ponte della Maddalena, na Toscana, segue o mesmo enredo. 

Neste sentido, a Ponte da Misarela não é apenas um monumento medieval de pedra e cal. É um símbolo de um rito de passagem, de um limiar entre mundos, de uma ligação entre o humano e o divino. E, ao recriar o Entrudo na sua envolvência mística, o povo de Montalegre e Vieira do Minho reafirma a sua ligação a um passado pagão e a um presente cultural vivo, em que o riso, a festa, a má-lingua e a saudade de uma juventude perdida coexistem com a aura do mistério e do sagrado.


Imagem de capa criada por AI.


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