Aprender com os Mitos: uma Psicologia da Antiguidade
“Estas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram”.
Teocrito
Falar sobre Mitologia é refletir sobre a grandiosidade da natureza e do espírito humano. Segundo Mircea Eliade o Mito é uma narrativa tradicional de conteúdo religioso, que procura explicar os principais acontecimentos da vida por meio do sobrenatural, de algo que “ultrapassa a natureza”, algo que é da ordem do simbólico. O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos. Para Eliade, de algum modo os mitos referem-se a algo que teve início, apresentando-nos a gestação do Homem e do seu Mundo, do Universo e seus confins. Trata-se de algo que não tem fim, captado e narrado por o ser humano, esse Homem finito.
Ao contar uma história sagrada o mito auxilia o ser humano a desvendar os mistérios da vida e da sua própria existência. As personagens dos mitos regra geral não são seres humanos, são Deuses ou heróis civilizadores (revelação). Os Esquimó referem “É assim porque foi dito que é assim”. Utilizam esta afirmação para justificar a sua história sagrada, trata-se de algo dito, narrado e vinculado à história desse povo. É algo que lhes dá identidade e coesão, sendo esta uma das funções do mito, uma função mais social e identitária.
A Mitologia não deve ser encarada como uma fantasia ou inverdade, a Mitologia trata da matéria que forja o mais íntimo do ser humano. Falar de mitologia é falar de psicologia, pois esta reflete a riqueza e diversidade do psiquismo humano. Aquilo que os seres humanos têm em comum revela-se no mito. Aqui temos a função psicológica dos mitos, refletida na riqueza dos conteúdos oníricos presentes nos sonhos, na fantasia e imaginação humana, trata-se da função psicológica, para Joseph Campbell, a mais importante das funções míticas.
Joseph Campbell identificou quatro maneiras de o mito servir as necessidades humanas. Cada um desses serviços do mito é uma especulação imaginária acerca do caráter do nosso relacionamento com as quatro ordens do mistério:
Na Grécia Antiga para além da função mediadora a mitologia desempenhava uma função integradora, segundo Agostinho da Silva, a “religião grega” surgiu da observação dos fenómenos da natureza, mas também do desejo de consagrar determinadas instituições sociais a ideias novas”. Afirma o autor: “como nenhum outro povo o grego ama a terra, não bastava a sua vida o céu distante, o espetáculo belo dos astros, que nele brilham, o sol que o atravessa com a sua cabeleira de fogo, a face melancólica da lua e o tremeluzir das estrelas que uma a uma se vão acendendo no crepúsculo suave”.
O céu era longínquo… “Na terra, ao contrário o Homem tinha construído o seu lar e arroteado o seu campo”. “Desde muito cedo o grego adorou a terra (Deméter) e desde muito cedo teve a noção da vida misteriosa e incessante que anima. Impressionou-o o segredo dos germes que se desenvolvem sob a terra”.
Prossegue Agostinho com o seu pensamento vivo: “o grego sentia a divindade da terra e adorava-a como a mais antiga das deusas, alta, grande e forte, de serena beleza, de seios fecundos e poderosos, majestosa, ela sabe, no entanto ter um sorriso nos lábios, o sorriso que protege o Homem contra a fome e a miséria”. “Deméter não era apenas a deusa que admirava, ela foi também a deusa todo-poderosa, a terra seria sempre infecunda sem a água e o grego não tardou a divinizar a água fertilizante, desde a simples fonte que brota da fenda dos rochedos até ao que se precipita no grande mar”.
Apesar da sua inteligência vivíssima e da sua vontade capaz de abater todos os obstáculos e todas as dificuldades, embora toda a Natureza estivesse povoada de deuses benignos que o protegiam, de génios benevolentes que lhe facilitavam a vida — o grego sentia que, sozinho, nada poderia contra as forças do mundo adversárias da atividade humana. Deste modo surge no grego a ideia de consagração do meio social; como a natureza lhe parecia sob um aspeto divino, todas as modalidades da atividade humana vão ter deuses que as protejam com a sua ação poderosa e benfeitora.
A colaboração dos outros homens impunha-se-lhe como uma necessidade vital; só pela união de todos, e sem que ela anule o individualismo característico da sua personalidade, o grego poderia desenvolver plenamente todas as qualidades do seu espírito. Na missão sagrada de procurar o caminho da perfeição os outros homens deviam ser os seus companheiros e colaboradores.
A família apresenta-se como célula fundante da sociedade, e ao lar e ao seu abrigo e proteção os gregos consagraram a deusa Héstia, a protetora do “fogo do lar”, a luz da casa. A ela consagravam uma chama central que estava sempre acesa e da qual cuidavam.
A chama cria dentro de casa um doce ambiente, com toda a família em volta do lar, dá-lhe o consolo de saber unida para toda a família em volta do lar, dá-lhe o consolo de se saber unida para toda a vida, de se sentir solidária para além da própria vida; incansável e alegre o fogo arde, crepitando, e comunica a todos a mesma energia ascensional com que a sua chama se eleva; E ao mesmo tempo quanta severidade, quanta pureza no fogo!
Aqui relembramos Teilhard de Chardin que nos desafiava a reinventar o fogo, o qual nos apresenta como uma força simbólica que domina o amor, assim, tal como defende o autor: “então, pela segunda vez na história da humanidade, teremos inventado o fogo!”
Na Mitologia Grega foi Prometeu que nos trouxe o fogo, Agostinho da Silva apelida Prometeu de o bom gigante, aquele que o trouxe aos homens e lhes deu com ele todos os benefícios que o lume transporta. Prometeu, procurou cuidar da humanidade roubando o fogo sagrado dos Deuses, ou seja a inteligência.
Perdendo-se a contemplar a chama, o espírito humano envolve-se no seu colear, segue com ela nesse fluir incessante para mais alto, para o céu que ela tenta atingir; e, um dia, um filósofo fará “substractum” do mundo, a tomará por geradora e imagem de todas as coisas.
Antes, porém, que Heraclito pusesse o fogo como base das suas doutrinas, já o grego tinha divinizado, já tinha aprendido o seu espírito divino, que outra coisa não significa para ele a divinização; e no fogo, na chama familiar, o grego tinha reconhecido, como já referimos em HÉSTIA, a guarda do lar, a guardiã casta e pura.
Apesar de a considerar como a mais antiga das divindades, de ser o seu altar de Olímpia aquele em que primeiro se sacrificava, o grego fez do fogo familiar uma deusa e não um deus; e assim consagrou ao mesmo tempo o carinho da mulher pelo lar, o cuidado feminino que alimenta a chama bendita e que nunca deixa que a última centelha palpite e se apague sob as cinzas. Ou melhor dizendo, uma dimensão interna do feminino como símbolo e potência, para além do género.
Continua...
Parte II Os Mitos contam, os Mitos cantam
Sugestões de Leitura |
• Campbell, J. (2020). O Poder dos Mitos. Lua de Papel.
• da Silva, A. (2002). Estudos sobre Cultura Clássica. Âncora.
• Mircea, E. (2006). O sagrado e o profano: a essência das religiões. Livros do Brasil.
• Salis, V. D. (2018). Mitologia viva: aprendendo com os deuses a arte de viver e amar. Editora Nova Alexandria.
Fotografia de capa | Homero de Jean-Baptiste Auguste Leloir (1809-1892) ► Coleção Museu do Louvre
Gostou do texto? Deixe abaixo a sua reação...