Lendas de Chaves: Entre Amores e Maldições

Lendas de Chaves: Entre Amores e Maldições

Uma viagem até à cidade de Chaves leva-nos a explorar um passado romano bem presente na sua ponte de Trajano, os marcos miliários da Via XVII e nas suas famosas termas. Mas também é lugar que nos recorda as lendas e as superstições medievais, as pelejas entre cristãos e mouros, os amores perdidos em finais abruptos.

A beijar a Galiza, Chaves tem a particularidade de ser uma daquelas cidades intemporais, pacatas, onde a qualidade de vida se sente em cada rua, onde o silêncio do anoitecer nos convida a ouvir a história do antigamente. E é precisamente nessas histórias, entre lendas e mitos, narrativas e superstições que se guarda muito do encanto desta cidade banhada pelo Tâmega, etapa fundamental no Caminho Português Interior para Santiago de Compostela.

Famosa entre todas as lendas é a da Moura Encantada da Ponte de Trajano. Erguida no final do séc. I, a fim de permitir uma rápida transposição do obstáculo fluvial que os passantes da Via XVII enfrentavam, a ponte idealizada no tempo do imperador Trajano mostrou-se fundamental no esforço de aproximar Bracara Augusta e Asturica Augusta, separadas por 247 milhas romanas, mais ou menos 365 quilómetros. Assim, após a reconquista de Chaves pelo estandarte mourisco, ergueu-se como alcaide do castelo um feroz guerreiro, que, visando fortificar a linhagem da sua casa, decidiu unir o seu filho Abed à sua própria sobrinha (cujo nome a história infelizmente não guardou), jovem de beleza e de virtudes reconhecidas, de um coração ainda não despertado pelo amor. No repente passar dos anos, e com o avanço da reconquista cristã sobre a região, os ares da antiga Aqua Flavie romana encheram-se de tumulto e guerra. O alcaide e Abed lideraram a defesa contra as hostes da Cruz, mas durante um dos confrontos, a jovem moura, observando do alto das muralhas, deteve os seus olhos num guerreiro cristão, de porte nobre e valente, o qual, ao perceber a sua presença, hesitou na sua ofensiva, movido pela surpresa de tal visão, apesar do caos. O cavaleiro, arrebatado pela encantadora figura, ordenou que esta fosse levada em segurança para o acampamento cristão, na melhor oportunidade. Apesar da resistência muçulmana, o destino de Chaves foi selado, e a fortaleza caiu sob o domínio cristão. A moura, contudo, encontrou um inesperado contentamento ao lado do guerreiro que a salvara, enquanto Abed, consumido pela traição, jurou vingança. Recuperado de um ferimento de guerra, Abed retornou a Chaves disfarçado de mendigo e, sob o disfarce da penúria, aguardou, numa noite de S. João, a sua antiga prometida na ponte de Trajano.

Ao reconhecer a sua mão estendida em caridade, Abed, com um olhar que misturava dor e despeito, amaldiçoou-a a permanecer encantada sob o terceiro arco da ponte, proclamando que somente o amor de um novo cavaleiro cristão poderia libertá-la, um amor que ele predisse que nunca viria. Com essas palavras, a moura desvaneceu, deixando Abed a fugir e o guerreiro cristão a mergulhar num abismo de desespero. Este último dedicou seus dias a uma busca infrutífera pela amada, encomendando até mesmo a captura de Abed, na esperança de desfazer o feitiço. Mas a moura jamais foi vista novamente, e o cristão sucumbiu à dor e à saudade, deixando para trás uma lenda de amor perdido e maldições eternas nas margens do rio Tâmega. Ainda hoje, nas noites de S. João, as gentes de Chaves afirmam ouvir os lamuriosos gemidos da moura encantada.

Outra lenda remete-nos mesmo para uma origem mítica do nome da cidade: a lenda das duas Chaves. Nos anos dourados do legado de Tito Flávio Vespasiano (o nono imperador romano), as legiões, imbuídas de um espírito triunfante, cruzaram os territórios ibéricos da antiga Galécia até ao extremo norte oriental do atual território português. Encantados pela fertilidade dessas terras, ali se estabeleceram, tecendo a malha de estradas e pontes que viriam a definir a paisagem flaviense. Era notória a veneração romana pela água, elemento vital que moldava o seu modo de viver e cura. Assim, quando os romanos descobriram fontes de águas termais brotando generosamente do solo, a sua alegria não se conteve. Construíram aquedutos e grandes tanques para banhos, cujas propriedades terapêuticas logo se tornaram lendárias, conferindo à nascente cidade o nome de Aquae Flaviae, em homenagem às curas miraculosas e à estirpe dos Flávios. Esta cidade florescente chamou a atenção do próprio imperador, que designou seu primo, o jovem e audaz Décio Flávio, comandante da Legião Sétima, como procurador da região. A páginas tantas, o cônsul Cornélio Máximo, em Roma, foi surpreendido por uma mensagem de Décio. Consultando a sua filha Lúcia sobre o assunto, revelou-lhe uma caixa de seda que continha duas chaves douradas – emblemas de saúde e amor. Décio oferecia à jovem e frágil Lúcia, marcada pelas cicatrizes no seu rosto e mãos, a oportunidade de buscar cura nas águas termais. Após receber a bênção do Imperador Vespasiano, Cornélio e Lúcia partiram para a cidade. Em poucas semanas, os banhos revelaram os seus efeitos milagrosos, e Lúcia, aliviada e rejuvenescida, agradeceu a Décio pela gentileza da caixa e pelas chaves promissoras. Num momento de ternura, enquanto acariciava os cabelos de Lúcia, Décio rogou-lhe que guardasse as duas chaves durante toda a sua vida, ao que a jovem assentiu, garantindo que as conservaria, se possível, para toda a eternidade.

A última lenda não fala de amor, mas de preconceito e não há habitante em Chaves que não conheça a história de Maria Mantela. Começa, quase sempre, desta forma: em tempos remotos, quando a história e o mito ainda se entrelaçavam nas brumas de Chaves, vivia Maria Mantela com seu esposo, Fernão Gralho, numa imponente habitação próxima à Igreja Matriz. O casal, abastado e distinto, desfrutava dos rendimentos que a fortuna lhes permitia, concedendo a Fernão os deleites da caça, a sua mais predileta atividade social. Certa vez, enquanto a ventura de um herdeiro se anunciava no ventre da sua esposa, o casal foi abordado por uma mendiga, portadora de dois gémeos e suplicante de caridade. Fernão, movido pela compaixão que sempre o caracterizou, generosamente acedeu ao seu apelo. Maria, contudo, num lapso de severidade que habitualmente lhe era reconhecido, duvidou da probidade da pobre mulher, questionando a possibilidade de um único homem gerar mais do que um filho num único parto. A mendiga, ferida na sua honra, rogou para que a fidalga nunca testemunhasse a aura de preconceito em que a sociedade votou a mendiga. O destino, na sua ironia sempre cruel, revelou-se quando Maria deu à luz não um, mas sete gémeos! O terror de ser acusada de traição pelo marido levou Mantela a uma decisão desesperada: ordenou que seis dos infantes fossem lançados nas águas do rio pela ama da casa, reservando apenas o mais robusto.

Ao entardecer, a ama, cesto ao braço, dirigiu-se às Poldras de Chaves (pequenas pedras que se encontram entre as duas margens do Tâmega para cumprir o sinistro encargo. No entanto, o próprio Fernão, por providência ou destino sempre justiceiro, avistou a ama, indagando sobre seu ato. Sob o disfarce de uma ninhada de cães, tentou esta encobrir a verdade, mas a curiosidade de Fernão desvelou o conteúdo do cesto: os seis inocentes meninos. Compreendendo a magnitude do desvario que a esposa estivera prestes a cometer, Fernão, num gesto de magnânima compreensão, absolveu Maria de sua culpa iminente. Secretamente, distribuiu os meninos a seis famílias nas aldeias do concelho, guardando o silêncio sobre tal ato. Uma década transcorreu, com Maria a carregar o peso de sua suposta iniquidade, trespassada pelos remorsos.

No alvorecer de um novo ano, Fernão propôs um banquete, alegando a presença de seis amigos. Ao se deparar com a mesa, Maria viu, não um, mas sete jovens de feições e trajes indistintos. Naquele momento, Fernão revelou a verdade, aliviando o coração atribulado de sua esposa com a visão dos filhos que ela pensara perdidos. Os gémeos, abençoados pela sua origem tumultuada, abraçaram a fé, tornando-se sacerdotes e fundadores de sete igrejas sob a égide de Santa Maria. Em memória da sua mãe e de sua saga, um epitáfio na Igreja de Santa Maria Maior de Chaves perpetua sua história: "Aqui jaz Maria Mantela, com seus filhos à roda dela".


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