Caminho Português de Santiago Ganha Nova Dimensão
Deixando a Invicta para trás rumo a Vairão...
O Caminho Português de Santiago ganha nova dimensão assim que o peregrino abandona o Porto em direção ao norte. Se pela manhã guardamos a memória das ruas que fizeram a história medieval do velho burgo, pela tarde fugimos do asfalto e da realidade industrial maiata até adentrarmos nos campos agrícolas que rodeiam o Mosteiro de Vairão, 25 quilómetros depois.
Não passará indiferente nas histórias a contar aos filhos, netos e amigos, o tempo passado na cidade do Porto, imerso na monumentalidade do seu casario, igrejas e mosteiros, museus, salas de espetáculo, jardins, esculturas e “la movida”. É o momento de dizer adeus definitivamente à casa dos “Tripeiros”, assim são chamados os cidadãos do Porto, fruto de duas lendas que ganharam contornos e fama ao longo dos tempos: a primeira diz respeito ao auxílio que os portuenses prestaram às tropas de D. João, mestre de Avis, aquando do cerco de Lisboa pelos castelhanos, em 1384; a segunda o apoio à esquadra do Infante D. Henrique nas vésperas da tomada de Ceuta, em 1415. Em ambas as lendas, a gentes do Porto prescindiram de toda a carne disponível, ficando apenas com as vísceras dos animais, ou seja, as tripas (ou dobrada como lhes chamam os de Lisboa), eternizando desta forma a valorosa alcunha de “Tripeiros” e que se encontra na origem do mais importante prato à disposição dos apreciadores da boa mesa: as “Tripas à moda do Porto”, receita à base de feijão branco, carnes diversas e, mais importante, as tripas. Em 2011 foi considerada uma das “Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa”.
Fotografia | Fachada da Igreja dos Grilos (ou do Colégio de S. Lourenço. Para além do templo vale a pena descobrir o museu de arte sacra).
A partir do terreiro da Sé, o peregrino irá serpentear pelas ruas do centro histórico, primeiro em direção à torre de D. Pedro Pitões, até ao largo Pedro Vitorino (onde se acede ao miradouro das Aldas, para contemplar uma vista invejável do aglomerado de casas à beira-rio) e daí descer por escadas íngremes até ao largo da Igreja do Colégio de S. Lourenço, onde podemos encontrar a bonita igreja dos Grilos, edificada pelos Jesuítas em 1577. Tem o nome peculiar de “Grilos” pelo facto de os frades da Companhia de Jesus usarem uma batina cortada ao fundo da casaca, dando o aspeto semelhante às asas de um grilo. No entanto, esta descrição poderá muito bem ser lenda, já que muitos historiadores advogam que a alcunha “Grilos” terá surgido do facto de, quando os religiosos de Santo Inácio de Loyola entraram em Portugal, em 1663, instalaram-se primeiramente em Lisboa, precisamente no Sítio do Grilo, na atual freguesia do Beato.
Fotografia | Rua de Sant’Ana. Engalanada para as festas de S. João, na imagem da direita, encontramos a edícula com a imagem de Santa Ana. Na foto à esquerda um casal de peregrinos.
É altura de entrar na rua de Sant’Ana, eternizada no romance de Almeida Garret, “O Arco de Sant’Ana”, numa alusão a uma antiga porta da muralha primitiva da cidade que aqui se encontrava. Muitos estudiosos da história do Porto defendem que esta (que já foi chamada de Rua das Aldas) poderá muito bem ser a rua mais antiga da cidade. No final desta via ainda é possível contemplar uma edícula com a imagem de Santa Ana, antes de virar à esquerda na rua da Bainharia, célebre por aqui se encontrarem os bainheiros, artesãos que se dedicavam à manufatura de bainhas para espadas e facas.
Importa referir, sobretudo aos leitores que não sejam oriundos da Europa, que muitas ruas dos centros históricos das cidades mais antigas do Velho Continente ganharam a sua toponímia a partir das atividades económicas que se fixavam nesta ou naquela artéria, como são os exemplos da “Rua do Ouro” ou “Rua dos Cordoeiros (estas em Lisboa), “Rua dos Caldeireiros” (Porto) ou mesmo a “Rua dos Concheiros”, em Santiago de Compostela.
Ao fundo da Rua da Bainharia miramos o largo do antigo Mosteiro de S. Domingos e podemos viajar até ao passado, a uma altura em que não havia a rua de Mouzinho da Silveira (que permite a ligação entre a Bainharia e o Largo de S. Domingos), mas sim o Rio de Vila, agora encanado e coberto pelo arruamento oitocentista. O peregrino medieval cruzava uma ponte para alcançar o largo e seguir até à Rua de Santa Catarina das Flores, nos dias da hoje conhecida apenas como a Rua das Flores. É um dos aglomerados comerciais mais importantes do Porto. Atualmente inundada de hotéis e lojas de “souvenirs”, vale a pena destacar a igreja da Misericórdia, cuja atual configuração data do séc. XVIII, uma obra-prima do barroco, da autoria do arquiteto italiano Nicolau Nasoni. Importa mencionar o extraordinário museu da Santa Casa da Misericórdia do Porto, paredes-meias com a Igreja, um núcleo fundamental no que toca a explorar o rico passado histórico-documental da cidade.
Fotografia | Rua das Flores. Ao fundo, à direita avistam-se os fogaréus que enquadram a cruz central da igreja da Misericórdia do Porto.
É na Rua das Flores que o peregrino pode optar pelas três variantes do Caminho Português:
► Se desejar prosseguir via Caminho da Costa (percurso mais recente), segue em direção à Rua de Belmonte e daí até às Virtudes (ou pode ainda seguir pela moderna “Senda Litoral” que acompanha o curso do rio Douro até à Foz).
► Se optar por Braga, caminha em direção ao Largo dos Loios, alcançando a rua do Almada e daí até à Praça da República, Igreja da Irmandade da Lapa (inaugurada em 1863, aqui encontra-se o coração do rei D. Pedro IV de Portugal e primeiro imperador do Brasil) e capela do Senhor do Olho Vivo (icónica por se encontrar, no seu interior, um cruzeiro com a imagem de Santiago).
Fotografia | Um peregrino enfrenta a íngreme Rua do Ferraz, sinalizada pelas setas amarelas do Caminho.
► Se a intenção é seguir para Barcelos (atualmente a variante mais concorrida do Caminho Central), então sobe a íngreme rua do Ferraz até à rua da Vitória e daí até ao Jardim da Cordoaria, onde encontramos a antiga cadeia da Relação, eternizada nas páginas do escritor Camilo Castelo Branco e do temível salteador conhecido como “Zé do Telhado”. A rota pelo núcleo urbano continua pelas traseiras da reitoria da Universidade do Porto, até às igrejas dos Carmelitas e do Carmo (unidas pela casa mais pequena do Porto) e daí à praça de Carlos Alberto, seguindo as setas amarelas até à rua de Cedofeita.
Fotografia | Igrejas dos Carmelitas (à esquerda) e do Carmo (à direita, cuja lateral é constituída por um conjunto azulejar de grande riqueza iconográfica e artística) em dia de chuva. No meio dos dois cenóbios encontra-se aquela que é conhecida como a casa mais pequena do Porto.
No final da mesma, interessa descobrir a igreja românica de S. Martinho de Cedofeita, de origem sueva (séc. VI) e reedificada no séc. XII. A partir daqui o caminho perde um pouco do encanto histórico, à medida que vamos desbravando vias mais contemporâneas até à Capela da Ramada Alta, a caminho da Praça do Exército Libertador, alcançando a última igreja do Porto, antes de abandonar a cidade: a igreja velha do Carvalhido ou capela de Nossa Senhora da Conceição, datada do séc. XVIII, templo que merece destaque pelo conjunto azulejar, colocado em 1940. Prestes a sair da cidade das Francesinhas, das Tripas e do Bacalhau à Gomes de Sá, alcançamos a fronteira entre a Invicta e Matosinhos, no momento em que a rua do Monte dos Burgos alcança a Circunvalação e segue para a Rua Nova do Seixo, onde junto ao cruzeiro do Padrão da Légua se pode escolher entre o Caminho da Costa, rumo a Santiago de Custóias, virando para a rua da Fonte Velha, ou em frente, até à Igreja de S. Pedro e Cruzeiro de Araújo.
Fotografia | Igreja do mosteiro do Divino Salvador de Moreira, Maia. É o mosteiro mais antigo da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, fundado em 832. A atual arquitetura data de 1622.
O concelho da Maia é logo a seguir. Terra de importância fulcral para a história da fundação do reino de Portugal, onde se destacou a figura ilustre de Gonçalo Mendes da Maia, conhecido como o “Lidador. É neste tramo da etapa que o périplo se torna mais cansativo, com uma cascata interminável de asfalto, prédios, fábricas, pouca sombra, sem natureza ou património a assinalar, à exceção da igreja do Mosteiro do Divino Salvador de Moreira, de estilo maneirista, terminado em 1622, e que é reconhecido pelos maiatos de gema como a “Catedral das Terras da Maia”. Enfrentando o caos viário da Estrada Nacional nº 13, só quando o caminho adentra no concelho de Vila do Conde é que o peregrino pode finalmente repousar os olhos numa visão rural, feita de milheirais, vacarias e casas de lavradores, terminando a jornada junto ao mosteiro beneditino de S. Salvador de Vairão, erguido no séc. X. Foi nesta comunidade que se terá encontrado, segundo alguns investigadores, o mais antigo texto escrito em língua galego-portuguesa (antecessora das atuais línguas portuguesa e galega, um dos mais importantes registos linguísticos e culturais da Idade Média, imortalizado nas célebres “Cantigas de Santa Maria”, do rei Afonso X, o Sábio), conhecido como a “Notícia de Torto”, documento que se encontra guardado no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa.
1 ► Cruzeiro de Araújo, em Leça do Balio. Ao lado encontramos uma edícula (em forma de gruta) com uma imagem de S. Pedro.
2 ► Mosteiro de S. Salvador de Vairão e albergue de peregrinos, fundado em julho de 2013 por Ana Lobo e Pedro Macedo, um casal de peregrinos que se conheceu precisamente no Caminho.
É em Vairão que o peregrino encontra o primeiro albergue público no Caminho Central a norte do Porto, um abrigo muito especial, fundado à volta de uma história de amor.
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