Em Barcelos Mora o Galo que é Lenda e Artesanato
A cidade banhada pelo Cávado é rica em património edificado e imaterial. Símbolo maior da identidade cultural de Barcelos, a lenda do Galo é a mais importante de todas as narrativas jacobeias do Caminho Português.
Depois de um retemperador café no “Cantinho do Peregrino”, ainda na margem do Cávado, em Barcelinhos, a vontade de alcançar a “cidade do Galo” invade o corpo com uma renovada energia, agora que mais uma etapa do Caminho Português, uma das mais especiais de toda a peregrinação, sem qualquer margem para dúvida, chega ao fim, não sem antes explorar o centro histórico desta bela localidade minhota.
Fotografia | Panorâmica de Barcelos, com a ponte medieval e a casa da Azenha em primeiro plano. À esquerda o solar dos Pinheiros e a Câmara Municipal. Ao centro a Igreja Matriz e o museu arqueológico.
Atravessar a ponte medieval (cuja construção, no séc. XIV, terá levado a que a grande maioria dos peregrinos do passado optassem, como acontece nos dias de hoje, por esta via, em detrimento do, outrora, perigoso e mais longo caminho até Braga) ao toque dos sinos da igreja gótica de Santa Maria faz-nos transportar para um tempo em que os condes mandavam na cidade e os juízes aplicavam a lei, tantas vezes sem justiça provada.
Deixando a Casa da Azenha - construção oitocentista de um moinho de água de granito, encimado pela habitação do moleiro – para trás, não ficamos indiferentes ao centenário pelourinho até darmos de frente com o Solar dos Pinheiros, exemplo notável da arquitetura civil do séc. XV e que no alto esconde uma escultura que foge, não raras vezes, à atenção mesmo dos mais curiosos: o “Barbadão”, personagem maior de uma daquelas lendas que fazem de Barcelos uma verdadeira meca da história e dos mitos.
Tudo começou quando, supostamente, D. João I, já casado com D. Filipa de Lencastre, se apaixonou por Inês Pires, filha de Pero Esteves. Sabendo do caso extraconjugal da jovem com o monarca, o despeitado patriarca terá jurado nunca mais cortar a sua barba. Por essa razão, a escultura que se encontra na cornija do lado sul do Solar do Pinheiros é, precisamente, uma imagem de um velho a puxar as suas longas barbas. Refira-se ainda que da relação entre o primeiro rei da dinastia de Avis e Inês Pires nasceu Afonso de Portugal, que foi conde de Barcelos e primeiro duque de Bragança.
É justamente quando nos deparamos com a Igreja Matriz de Barcelos (ladeada pelo edifício da Câmara Municipal) que a nossa atenção se desvia, atraindo para a memória do antes extraordinário Paço dos Condes, agora uma relíquia transformada em museu arqueológico a céu aberto. Mas cedo chegamos à conclusão que não é a antiga habitação que nos puxa misticamente para o lugar, mas sim aquele que é o maior ícone histórico-cultural de Barcelos, o Cruzeiro do Senhor do Galo. Desta imensa estrutura granítica vertical, encimada por uma cruz, emana a mais importante lenda jacobeia do Caminho Português e que vale a pena recordar, porque, como diz o ditado “quem conta um conto aumenta um ponto”.
A tradição diz que um peregrino galego, devoto de Santiago e de Nossa Senhora, a caminho de Compostela terá parado na cidade à procura de abrigo e comida. Como estava a acontecer uma onda de assaltos no burgo, a chegada do forasteiro levando a uma suspeita que se tornou crescente junto da população, culminando com a prisão do peregrino e julgamento sem defesa por parte das autoridades. Sabendo o peregrino que o seu destino ficaria selado pelo cadafalso, implorou como último desejo ser levado à presença do juiz que lhe decretara a forca como epílogo de uma vida acidentada. O magistrado, que se preparava para degustar um farto galo assado, aceitou que o galego se apresentasse. O injustiçado peregrino reiterou a sua inocência, proferindo uma frase que ecoa através dos tempos: “É tão certo eu estar inocente como este galo cantar no momento em que me levarem para a forca. Mito, lenda, fantasia ou história, certo é que os relatos contam, como nesse dia acontecimentos milagrosos salvaram a vida do peregrino. Primeiro, com a aparição do Apóstolo Santiago, que evita que o galego morra sufocado pela corda ao segurar-lhe nos pés e, mais notável ainda, com o regresso à vida do galo (anteriormente temperado e assado) que, tal como profetizou o injustiçado, cantou para temor do juiz que logo decretou a libertação do homem. Anos depois, completada a sua jornada até Santiago de Compostela, terá regressado a Barcelos para edificar o cruzeiro, esculpindo nas faces da pedra as imagens de Santiago, de Nossa Senhora (encimada pelas imagens do Sol e da Lua), mas também de S. Bento (santo muito venerado, àquela época, no norte do país), sem esquecer a figura do galo, eternizando, desta forma, a mais bonita lenda do Caminho Português.
Refira-se, a bem da verdade, que nas rotas jacobeias encontramos várias lendas onde o galo encontra protagonismo, como é o caso da lenda do casal de galináceos de Santo Domingo de La Calzada (“donde cantó la galiña después de asada”), no Caminho Francês, na comunidade de La Rioja, em Espanha, ou a antiquíssima lenda do “Pendú Depandú” de Toulouse, uma das cidades mais importantes da rota ocidental gaulesa a Compostela.
Mas não se pense que o galo é apenas sinónimo de milagre ou lenda, é também epíteto para um prato típico de grande relevo gastronómico regional (o célebre Galo Assado à Moda de Barcelos) e inspiração para a artesania barcelense, com destaque para o figurado, arte popular certificada desde 2008 e que, ao longo dos anos deu a conhecer o génio de artistas como Rosa Ramalho, Domingos Côto, Rosa Côta e Júlia Côta. Nos dias de hoje o Museu da Olaria garante a continuidade da memória destes e de muitos outros artistas, cuja projeção internacional levará, certamente e com justiça, em poucos anos, à classificação como Património Imaterial da Humanidade.
Toda a cidade vive o Caminho de forma intensa. Facilmente encontramos pelas ruas e monumentos símbolos identitários da rota jacobeia ao longo dos séculos. Desde a idade Média aos dias de hoje, o passo dos peregrinos marcou o compasso da história da vila fundada por D. Afonso Henriques (em carta de foral datada de 1166-1167) que alcançou estatuto de urbe em 1928. A sua relação com a vizinha Galiza levou-a a criar uma predileção pela Virgem Peregrina de Pontevedra, cuja imagem se encontra na Igreja do Senhor Bom Jesus da Cruz, cenóbio que é igualmente motivo de adorada peregrinação, por alturas de maio, quando se celebra a grandiosa “Festa das Cruzes”. Tradição esta surgida também de uma lenda há muito enraizada na cultura popular e religiosa do povo, as crónicas relatam o aparecimento, em 1504, de uma cruz negra no chão do campo da Feira, no meio de um carvalhal. Com contornos ainda mais profundo e que vale a pena explorar em futuros textos, certo é que construída uma pequena igreja para “proteger” a cruz, que viria a ser substituída pelo atual templo, um projeto do famoso arquiteto barroco, o lisboeta João Antunes, e que abriu ao culto em 1710.
Depois de explorar as exposições do posto de turismo, de mirar o casario a partir do topo da Torre Medieval (que alberga, desde 2013, o Centro de Interpretação do Galo e da Cidade de Barcelos) sem esquecer a confraternização com os irmãos peregrinos da associação “Amigos da Montanha” e da delegação da AEJ- Associação Espaço Jacobeus, antes que anoiteça e as pernas peçam descanso, vale a pena assistir à missa do peregrino na Igreja de Santo António, uma cerimónia simples mas profunda, levada a cabo pelos frades Franciscanos Menores Capuchinhos, naquela que é uma das experiências mais espirituais do Caminho Português.
Fotografias | Artur Filipe dos Santos
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