O Caminho de Santiago e o Porto Medieval
Património Cultural das rotas portuguesas a Santiago de Compostela
A História, as Lendas e o Património dos Caminhos de Santiago
Quem nos dias de hoje percorre pela primeira vez as ruas esconsas e cinzentas da zona histórica do Porto não deixa de criar em si o desejo de se transportar no tempo e na história para o burgo velho da época medieval, onde mercadores, cordoeiros, bainheiros, alfaiates, entre muitos outros mesteres, e uma comunidade judaica que perdurou até aos tempos de el rei D. Manuel I, dividiam o espaço exíguo com a restante população e com os cónegos da Sé Catedral, todos estes debaixo do jugo de um único senhor: o Bispo do Porto. Figura fundamental para o crescimento da cidade, a importância do mais alto dignitário da Igreja do Porto daquele período, ganha enorme preponderância a partir da chegada do bispo D. Hugo, de nacionalidade francesa e antigo arcediago da sé Compostelana. Sobre esta personagem caem algumas das mais sombrias histórias daquele tempo. Homem de confiança do poderoso arcebispo de Santiago, Diego Gelmirez, sobre ele incidem as suspeitas de ter sido o autor do célebre episódio do “Pio Latrocínio”, uma história de contornos rocambolescos, caracterizada pelo roubo, em 1102, das mais importantes relíquias de santos da Sé de Braga, que até então disputava com Compostela o grau da diocese mais importante do noroeste peninsular. Não satisfeito por ver “descansar” no interior da sua catedral um dos apóstolos mais amados de Cristo, Diego Gelmirez, ávido em esvaziar o poder daquele que era conhecido como “Arcebispado Primaz das Espanhas”, decide rumar a Braga e visitar o seu “amigo” Geraldo (que mais tarde viria a ser canonizado, sendo atualmente o padroeiro dos bracarenses) e perpetrar aquela que foi conhecida como a “Furta Sacra”, apossando-se, à medida que ia passando por templos icónicos como S. Vítor, S. Frutuoso e Santa Susana, das relíquias dos santos descritos anteriormente e ainda as de S. Cucufate e S. Silvestre. As línguas viperinas da época descrevem que Gelmirez se terá refugiado na “Vila Corneliana” (atual Correlhã, concelho de Ponte de Lima, uma das localidades transcendentais do Caminho Português) e mandado D. Hugo fugir sem demora para a Galiza com o precioso espólio santo.
Outro episódio que envolve D. Hugo, este fundamental para a história do Porto do séc. XII, é o da nomeação deste prelado para a renovada diocese portucalense, sob os auspícios da rainha D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, com o beneplácito de Gelmirez, desferindo, desta forma, mais um rude golpe a Braga, que até então comandava os destinos desta cidade na margem direita do rio Douro.
D. Hugo terá recebido das mãos da esposa do falecido D. Henrique, senhor do Condado Portucalense, a famosa “Carta de Couto”, um documento ainda hoje polémico, no seio dos historiadores, quanto à sua real existência ou veracidade, já que, por exemplo, as datas descritas no documento entram em conflito com relatos da época, que referem que tanto o bispo como a rainha não se encontravam no Porto na data em que a carta foi assinada (1120, no calendário Gregoriano), entre outras incongruências, como a que diz respeito aos limites da doação da rainha. Certo é que mais tarde D. Afonso Henriques confirma essa mesma doação, da mesma forma que aceita a carta de Foral que D. Hugo outorga à cidade como forma de esta constituir uma estrutura de poder civil, antecessora da atual Câmara Municipal.
Importa referir que o bispo D. Hugo (que dá nome a uma rua por detrás da Sé) foi preponderante para o futuro do burgo: iniciou a construção românica da atual catedral, mandou reconstruir a primitiva cintura de muralhas da cidade (construída à volta do reduto onde hoje se encontra a Sé, no alto do morro de Penaventosa), conhecida como “Muro Romano” e que hoje conhecemos como Cerca Velha, e que durante largos anos se identificava, erradamente, como Muralha Sueva.
Na época de D. Hugo, o Porto era já uma cidade pujante a nível mercantil, o seu rio estava já povoado de inúmeras embarcações que transportavam preciosas mercadorias desde a bacia do Mediterrâneo até à Flandres e Ilhas Britânicas. Uma cidade tão ciosa de si mesma, feita de gente de peito feito e ar desconfiado, constantemente de pé atrás sempre que qualquer forasteiro ultrapassava os limites do burgo. Contudo, à medida que a Via Lusitana, um dos nomes que se atribuía ao Caminho Português de Santiago, crescia em importância, o Porto soube receber de forma cordata um cada maior número de peregrinos que acorriam a Compostela desde paragens tão distantes como o Algarve, Lisboa ou Coimbra. Inclusivamente a Sé Catedral deteve durante largos séculos uma capela de evocação a Santiago Maior no reduto do seu claustro velho. Como curiosidade refira-se que a primeira sede da Santa Casa da Misericórdia do Porto terá sido instalada precisamente nesta capela. Ainda hoje o museu da Catedral guarda uma escultura, de origem flamenga, de Santiago Apóstolo.
O peregrino jacobeu que entrava na “Civitas Virginis”, por exemplo, no séc. XIV (período de grande expansão do Porto, que coincidiu com o momento de maior fulgor do Caminho Português na Idade Média), depois de ultrapassado o Douro a bordo de uma barca, entrava no burgo a partir da Porta da Ribeira da segunda malha protetora da cidade, a Muralha Fernandina, mandada edificar por D. Afonso IV o Bravo, terminada já no reinado de D. Fernando o Formoso.
A partir da Ribeira, enfrentava a íngreme subida até ao alto de Penaventosa pela estreita rua dos Mercadores até à Rua da Bainharia e daí até à Rua Escura (que já se chamou Rua Nova e que era um dos locais de entrada da judaria velha do Porto), até alcançar o reduto da Sé Catedral, naquela época coberta à volta por um apertado casario. Na catedral, tanto naquele tempo como agora, o peregrino que cruza as portas deste templo fica com a sensação de abrir um livro de história da arquitetura e da escultura.
Fotografias | Artur Filipe dos Santos
Capa | Sé Catedral do Porto e estátua do cavaleiro galego Vímara Peres.
1 ► O peregrino poderá comprar ou carimbar a credencial do Caminho na Sé Catedral.
2 ► Marco do Caminho de Santiago (inaugurado em 2021) no terreiro da Sé.
3 ► Caminho de Santiago no Porto na Idade Média. Em cor amarela o caminho desde a Ribeira até à Sé, a azul o caminho deixa para trás a catedral e segue rumo à antiga estrada para Braga. Fonte: Porto Património Mundial
4 ► A Rua da Bainharia é uma das artérias mais antigas da cidade do Porto. Por esta via, hoje como na Idade Média, os peregrinos alcançam a Sé Catedral.
5 ► Sé do Porto enquadrada pelos arcos da Rua de S. Sebastião.
6 ► A Rua dos Mercadores ligava a Ribeira do Porto ao alto do Morro de Penaventosa, onde se encontra implantada a Sé Catedral.
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