Rio de Onor: Uma Aldeia que Une Dois Países
Rio de Onor: Uma Aldeia que Une Dois Países
Rio de Onor: Uma Aldeia que Une Dois Países

Rio de Onor: Uma Aldeia que Une Dois Países

Uma das pérolas raianas que vale a pena descobrir. Quis a vontade dos poderes que Rio de Onor vivesse, quase desde sempre, entre duas nações com um passado, uma proximidade linguística e cultural comum que, ainda hoje, perdura sempre que destrancamos o “carabelho” de uma porta amiga.

No concelho de Bragança, escondida de olhares indiscretos pela alta serrania do nordeste transmontano, subsiste uma aldeia invulgar, onde a linha divisória entre países praticamente só se descobre quando uma placa de fundo azul com as 27 estrelas da União Europeia nos “alerta” que “pisamos” Espanha. 

Rio de Onor, partilhada por Portugal e a nossa vizinha da raia, é cógnita como uma aldeia “sem fronteiras”, sendo na verdade duas povoações irmãs separadas apenas por um ribeiro (o Rio Onor) e unidas, ao invés, por séculos de história, cultura e entreajuda. As gentes locais falam um mesmo dialeto, partilham tradições e até se regem por regras comunitárias próprias, provando que ali, mais do que portugueses ou espanhóis, todos se sentem simplesmente rionorenses.

Embrenhando-nos no Parque Natural de Montesinho, é desta imensa mancha verde que partimos ao achamento deste refúgio serrano, onde a fronteira internacional “divide” a aldeia ao meio: de um lado está o Rio de Onor (Portugal) e do outro Rihonor de Castilla (Espanha). Mas diga-se, a bom da irmandade que se sente neste lugar, que os habitantes sempre ignoraram essa linha imaginária, fruto das relações familiares que se construíram, mas também do insulamento a que foram votados ao longo dos séculos.
 
Os residentes, cada vez em menor número e de idades cada vez mais avançadas, costumam referir-se às duas partes como “pueblo de arriba” e “pueblo de abajo” (aldeia de cima e aldeia de baixo), encarando-as como “una” só comunidade. A velha ponte de pedra (apelidada de “ponte romana”, mas sem a ser) une as duas margens do rio Onor, facilitando o convívio diário entre vizinhos de ambos os lados e a passagem fluida de pessoas e bens de uma forma pacata que só mesmo um singelo reduto como este pode oferecer.

O isolamento geográfico da região contribuiu para que os dois povos desenvolvessem, em conjunto, um modo de vida comum e singular, presente, inclusivamente na língua, realidade que reflete essa união. Aqui fala-se o rionorês, um dialeto local de raiz asturo-leonesa que é partilhado por portugueses e espanhóis, conservando expressões únicas que passam de geração em geração.
Tal como a história todos os lugarejos, por mais pequenos que sejam, têm uma origem. A de Rio de Onor, como tantas aldeias raianas, esconde-se na seiva dos dias.

Socorramo-nos dos documentos históricos que já em 1290, ao tempo do reinado de D. Dinis, mencionavam o “barrio de Rio de Onor”, evidenciando a remota cronologia deste assentamento. Durante séculos pertenceu à Casa de Bragança, e em 1784 a rainha D. Maria I chegou a conceder privilégios especiais à sua população. 

Por ficar longe dos centros urbanos, rodeada por serrados quase intransponíveis, a aldeia permaneceu relativamente ilhada, preservando um sistema de vida comunitária peculiar. Em vez de cada família viver fechada em si, aqui todos partilhavam responsabilidades e recursos. Formou-se um conselho da aldeia (conselho comunitário) onde cada família tinha voz e onde se decidiam em conjunto assuntos como a gestão dos campos, dos rebanhos e dos equipamentos coletivos. Dois mordomos (um representante de cada lado da fronteira) eram escolhidos, no dia 1 de janeiro, pelos habitantes para liderar a comunidade. Refira-se que todos os anos eram eleitos mordomos diferentes para espantar o brotar de uma sede de poder.

Juntos ordenavam as tarefas e garantiam o cumprimento das regras internas, mas não detinham poder absoluto – podiam ser substituídos a qualquer momento se a aldeia assim o entendesse.

Uma das tradições mais curiosas desse sistema é a da vara da justiça: um bastão de madeira onde estavam entalhados símbolos representando cada família da aldeia, que se utilizava também no dia da eleição dos mordomos, para identificar o candidato da sua predileção.

Vara da Justiça

Vara da Justiça. Fotografias de Artur Filipe dos Santos.

Quando alguém faltava a um dever comunitário ou quebrava uma regra, o conselho marcava na vara a infração correspondente e aplicava uma multa. As penalizações eram frequentemente pagas em géneros, por exemplo, medidos em canadas de vinho (antiga medida equivalente a cerca de sete litros e meio). Uma justiça informal que mantinha a ordem e incentivava a entreajuda, num local onde não existia polícia nem autoridade externa por perto, já que as gentes da aldeia resolviam os seus mesmos conflitos.

Rio de Onor foi sempre sede de trabalho comunitário. Os campos agrícolas eram lavrados e regados em conjunto, num sistema de rodízio em que todas as famílias participavam à vez. 

Aqui tudo era partilhado: Terras, colheitas e tarefas. Havia um único rebanho comunitário de gado que pastava nos terrenos da aldeia, sendo guardado à vez pelos vários vizinhos (um sistema tradicional conhecido na região como vezeira). Também existia apenas um touro comunitário para cobrir as vacas de todas as famílias, reduzindo a necessidade de cada proprietário ter o seu. Este bovídeo do povo, resguardado num curral coletivo, representava literalmente a partilha dos meios de subsistência e, ainda hoje, em visita à aldeia, podemos descobrir a “Casa do Touro”, um pequeno centro interpretativo que ajuda o viajante na descoberta da história de Rio de Onor. 

Outro paradigma desta relação profundamente comunitária é visível no ainda bem preservado forno comunitário, onde, todos os dias, as mulheres de agregados diferentes, se dedicavam a cozer o pão que alimentaria toda a aldeia. Finalmente, a altura da matança do porco representava nova expressão de solidariedade entre famílias. Assim cresceu uma confiança mútua que ainda hoje se reflete no desprendimento pela privacidade das suas casas e pelo testemunho deixado pelas eras fora, visível, contudo, em muitas portas das antigas moradias de xisto e pedra, sob a forma do “carabelho”, uma espécie de tranca ou ferrolho de madeira muito rudimentar. Este simples engenho era suficiente para proteger os celeiros e estábulos, porque, num lugar onde todos se conhecem e se apoiam, raramente havia furtos ou desconfianças.
E porque uma aldeia serrana é sempre sinónimo de tradições festivas religiosas, mas também profanas. 

No adro da igreja matriz (cuja a atual construção data do séc. XIX,) é já de muitos séculos a festa em honra ao padroeiro do recôndito povoado (e do cenóbio paroquial), S. João Batista, mas é a  Festa dos Rapazes, celebrada no tempo do Natal, a que se destaca plenamente, em que os jovens da aldeia assumem o protagonismo. E sim, aqui como em Varge ou Ousilhão, também se vestiam de caretos no arranque do inverno,  com trajes coloridos e máscaras tradicionais, percorrendo as ruas ao som  de instrumentos musicais, dançando e pregando partidas amigáveis e evidenciando-se às raparigas solteiras.

Por falar em música, esta foi, desde sempre, um pilar da identidade rionorense. Em especial, o som da gaita-de-foles ecoou durante décadas pelos montes em torno da aldeia, marcando o ritmo das festas e romarias. A gaita utilizada em Rio de Onor é da família da gaita sanabresa, um tipo de aerofone originário da região vizinha de Sanabria, na província de Zamora. Lendário se tornou o gaiteiro Juan Prieto Ximeno (1929–1987), conhecido pelas suas composições e pelo seu virtuosismo. Ximeno dominava as melodias típicas transmontanas e sanabresas, incluindo as alvoradas (toques tocados ao alvorecer para saudar dias festivos ou solenidades religiosas) e os repasseados (danças populares enérgicas, semelhantes a pasacalles ou marchas tradicionais). Em 1962, o etnólogo português Ernesto Veiga de Oliveira registou algumas dessas peças (incluído a célebre “Alvorada de Rio de Onor”), eternizando o som único da gaita tocada por Juan Ximeno, tornando-o num tesouro imaterial. Ainda hoje, as suas músicas são recordadas e tocadas por grupos folclóricos e alunos de escolas de música tradicional, garantindo que a herança musical da aldeia não se perde. Ouvir a gaita-de-foles ao vivo neste lugar, especialmente durante um amanhecer frio de inverno ou numa festa de verão, é como sentir a alma de Rio de Onor vibrar pelas montanhas.


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