Conhecimento e Arte entre corredores e prateleiras centenárias
Além de guardarem sabedoria, as bibliotecas são o lugar privilegiado para descobrir a história dos lugares onde se encontram, as experiências de quem as visitam. Mas há bibliotecas espalhadas pelo mundo que são uma contemplação artística para a alma e bálsamos para os sentidos, e duas delas são portuguesas.
Parecem-me já bastante longínquos os tempos em que literalmente invadia a biblioteca municipal à procura daquele livro recomendado pelo professor, pelo amigo, por uma notícia de jornal. Buscando desesperadamente pelo cartão que garantia o meu livre-trânsito ao mundo das prateleiras, das capas, folhas, cadeiras e mesas, ainda junto à porta conseguia sentir o cheiro a papel envelhecido misturado com o odor da humidade introduzida no espaço por uma nova infiltração no teto. Viviam-se tempos difíceis em que muitas vezes dávamos de caras com um rotundo “não, infelizmente não temos esse livro”. Sorte dos nativos digitais que, à distância de um clique, descobrem facilmente aquilo que procuram.
As bibliotecas sempre foram lugares de mistério, de adoração ao conhecimento proibido (quem não se lembra do velho monge bibliotecário assassino de “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco?), baús eternos da sabedoria das eras.
Se é verdade que impressiona quando ouvimos falar do gigantesco acervo, de mais de 700 mil documentos em papiro e pergaminho que conservavam a sabedoria de Arquimedes ou de Ptolomeu, que se perdeu com a destruição da Biblioteca de Alexandria, às mãos de Diocleciano, para uns, sob o jugo do califa Omar, para outros, quase mil anos depois da sua fundação (séc. III a.C), a antiguidade reservou-nos as memórias de outros templos da ciência do mundo antigo, como a primeira biblioteca da História, a de Nívine, atual Iraque, fundada no séc. VII a.C, a de Pérgamo, na Turquia, fundada no séc. II a.C. por Átalo I. Os historiadores creem que terá sido nesta cidade, precisamente entre o acervo de obras de Aristóteles, que terá sido inventado o pergaminho.
Mas também no oriente mais distante encontramos um dos bastiões antigos de proteção do conhecimento, a biblioteca de Nalanda, em Bihar, na índia. Muitos acreditam que esta faria parte da mais antiga universidade do mundo e importante centro de estudo da religião budista. Fundada no ano cinco da nossa era, a sua coleção, de mais de nove milhões de volumes, terá sido destruída no séc. XII.
Imagem | Biblioteca de Nalanda - Autor Vyzasatya
Mas não é só pela antiguidade clássica que viajamos quando falamos de catedrais épicas da erudição em forma de escrita. As bibliotecas nascidas em mosteiros e conventos um pouco por toda a Europa cristã da Alta e da Baixa Idade Média produziram valiosas coleções pelas mãos de monges copistas de complexo labor, que ainda hoje podemos contemplar: importantes códices como o Codex Calixtino ou também chamado de Liber Sancti Jacobi, manuscrito do séc. XII que conserva uma coleção de tradição litúrgica e musical evocativa ao apóstolo Santiago Maior e cujo livro V é conhecido como o primeiro guia do Caminho de Santiago; o Codex Manesse, do séc. XIII, identificado como Grande livro de Canções de Heidleberg; ou, finalmente, o Livro Vermelho de Monserret, o Llibre Vermell de Montserrat, manuscrito iluminado datado do final da Idade Média, publicado por volta de 1399, que conserva letras de cantigas de peregrinos que acorriam ao mosteiro de Monserrat, a poucos quilómetros da cidade de Barcelona.
Desse período profícuo da cultura do Velho Continente, que se destacam também pela sua surpreendente arquitetura e decoração, descobrimos as belas bibliotecas da Abadia de Melk, na Áustria (ainda hoje considerada uma das mais extraordinárias em todo o mundo), da catedral de Chartres, na França, de Zutphen, Holanda ou ainda das universidades de Sorbonne, em Paris, Oxford e Cambridge, na Inglaterra e do Trinity College, na Irlanda, sem esquecer as importantes bibliotecas renascentistas do mosteiro de El Escorial, em Espanha, a Biblioteca Apostólica do Vaticano ou da Abadia de Saint Gallen, na Suíça.
Imagem | Biblioteca do Vaticano - Michal Osmenda
Imagem | Abadia de Saint Gallen, na Suíça - Stiftsbibliothek
O espólio intemporal das mais antigas bibliotecas ainda em atividade - a que podemos ainda juntar as do Novo Mundo, como a Biblioteca do Congresso e de George Peobody, nos Estados Unidos, a do Real Gabinete Português, fundada em 1837, no Rio de Janeiro ou a “teatral” El Ateneo”, na Argentina – assim como as milhares de bibliotecas públicas e privadas espalhadas pelo globo, representam um baluarte contra a barbaria. Todos os anos a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) relembra o papel fundamental destes espaços, comemorando, de forma não oficial, a 1 de julho, o Dia Mundial das Bibliotecas, efeméride à qual não faltam os mais bonitos exemplares portugueses: A biblioteca Joanina e a do Palácio Nacional de Mafra.
Imagem | Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra - Amfeli
Reconhecidas como duas das mais belas bibliotecas universais, a biblioteca da Universidade de Coimbra (considerada em 2013 pelo britâncio The Telegraph como a “mais espetacular do mundo"), fundada em 1707 por D. João V (cognominado de “O Magnânimo) e a do Palácio-Convento de Mafra, terminada em 1792, proporcionam uma experiência desafiante a quem caminha nos seus corredores, representando um convite aos sentidos, desde a visão que permite contemplar a talha dourada barroca, as madeiras mais exóticas e o mármore mais elegantes, ao toque nas estantes centenárias que ainda hoje transmitem a energia de centenas de letrados que por aqui deambularam em busca da “suma-potência” do saber, passando ainda pelo cheiro intenso que se faz sentir das folhas de papel que teimaram em sobreviver à passagem das eras, sem esquecer o desafio auditivo do bater das asas dos morcegos, que ao anoitecer, invadem as galerias para se banquetearem de moscas, traças e outros inimigos das preciosas encadernações, proporcionando desta forma uma solução ecológica contra os invasores de estantes.
Já não são lugares de leitura, mas de visita obrigatória, desta feita em busca de outro conhecimento, desta feita promovido pelo estudo do património cultural. Já não são a fonte de sabedoria de outrora, esse cargo está entregue agora, mal ou bem, à inesgotável base de dados online, que muitas vezes nos confunde e nos dificulta a escolha entre o conhecimento que realmente vale a pena daquele que é acessório ou falso. Mas a magia das velhas bibliotecas ainda hoje faz eco e ainda vibramos quando tocamos um livro que já passou, sabe-se lá, por que mãos sapientes, em tempos onde era comum ouvir de um bibliotecário ou bibliotecária um autoritário “shiiuuu”.