A Pré-história Pagã do Ramadão
O escritor francês Ernest Renand, em 1851, ainda antes de ter enveredado (cerca de 1860) pela sua gorada tentativa de dinamitar historicamente o Cristianismo (hoje, de Renand, só se fala para advertir acerca dos erros de metodologia e das conclusões risíveis), referiu que, ao Contrário do Cristianismo, o islão “nasceu sob a plena luz da história”. Acontece que é difícil ver como é que esta asserção pode ser sustentada, com ou sem uma comparação mais ou menos extensa com o, muito mais criticado e enfuscado, Cristianismo.
Senão vejamos: a primeira referência escrita a Jesus data de cerca do ano 52 d.C. (“Primeira Carta aos Tessalonicenses”) — embora dando a divisar interlocutores que, de Jesus, já tinham ouvido falar há, pelo menos, 10 anos (cerca, portanto, do ano 40). O apontar para o ano 40 vai, justamente, em linha com a datação daquele que se estima ser o mais antigo hino cristão que chegou até nós, (e que se encontra no segundo capítulo da “Carta aos Filipenses”). Ou seja, estes dois testemunhos escritos de São Paulo, são facilmente datáveis de não mais do que 18 anos depois da morte de Jesus (ocorrida no ano de 33 d.C.).
Por outro lado, e se considerarmos os quatro Evangelhos canónicos (aqueles segundo Mateus, Marcos, Lucas e João) como biografias retrospetivas de Jesus, podemos chegar a dados idênticos, pois a mais antiga dessas biografias (a de Marcos) foi escrita não após o ano 50. E considerá-los como biografias, sublinhe-se bem, com uma amplitude conceptual que se quer que permaneça estritamente dentro das fronteiras da verdade mais sólida. Aquela que é dada, no caso presente de textos antigos e por exemplo, pelos métodos literários e histórico-críticos.
Nada disto possuímos, com pena para os historiadores e teólogos como eu, a respeito do fundador do islão. Tanto quanto se pode afirmar com o máximo de certeza (a mesma certeza usada para se referir os dados que foram apontados a propósito de Jesus), a primeira menção escrita ao mesmo provém de cerca de 85 anos depois daquela que é crida como a data da sua morte. Eis, já aqui, uma diferença cronológica assinalável.
Já no que diz respeito a uma qualquer forma de biografia minimamente passível de ser tida como tal, o hiato é ainda maior. Efetivamente, a primeira, redigida por Ibn Ishaq (e tendo o nome de “Vida do Mensageiro de Allah”), foi escrita mais de 100 anos depois daquela morte, só sendo conhecida, além do mais, por um texto de Ibn Hisham (“A Vida do Mensageiro”), o qual foi escrito 50 anos após aquela primeira biografia ter sido lavrada. Ou seja, cerca de 150 anos depois da mencionada morte da pessoa crida como originadora do islão. Eis-nos, agora, diante de um intervalo temporal quase 9 vezes maior do que o verificado com Jesus.
Face a isto, é com grande desgosto que se debruçam sobre as raízes do islão os teólogos, sociólogos, historiadores e especialistas noutras áreas do saber interessados nesse tema. Na realidade, quanto mais se adentram nessa temática, mais constatam que não logram ver o emergir do islão sob uma máxima claridade (conforme advogou Renand). Vêem-no, isso sim, sob uma neblina imensa e densa que, se se verificasse com Jesus, já teria levado a que a existência do Mesmo fosse negada com vigor histórico. Mas com o islão e o seu suposto originador, a realidade é, por diversos motivos, muito diferente, pois, se calhar, há muitas pessoas com medo de “Rumo ao Farol” de Virginia Woolf.
Uma vez realizado este lançamento inicial, gostaria de abordar um tema que, segundo o meu melhor pensar, pode ser tratado do modo mais descomplexado, pacífico e franco na exemplificação e manifestação da aduzida neblina: a proveniência do Ramadão. Em concreto: a sua origem pagã, maometizada posteriormente com o advento do islão. Sei que estas palavras surgem desfasadas, neste ano de 2022, da ocorrência desse evento religioso islâmico (o qual, seguindo um assaz cuidadoso ciclo lunar, acaba por ser uma festividade móvel dentro do calendário Gregoriano). Todavia, mesmo assim, estimo que tais palavras poderão ser lidas, por quem se interessa por estes assuntos, em qualquer altura.
Ora bem, a virtualmente única diferença, entre, por um lado, o Ramadão e, por outro lado, um festival lunar pagão realizado nos mesmos moldes antes daquela maometização, é que o Ramadão é praticado por crentes islâmicos e a dita celebração pagã era realizada por tribos árabes pagãs, em muito inspiradas nos Sabeus. Isto mesmo é-nos exposto (num dito preservado em Sahih Bukhari 5, 58, 172) por aquela que a generalidade dos muçulmanos estima ter sido a esposa predileta do seu fundador: Aisha.
Como se sabe, os Sabeus (da linha madeia ou, sobretudo, harãniana — e que são diversas vezes referidos na Bíblia e no Corão) praticavam, também segundo um calendário lunar, 30 dias de jejum (para que a Lua, astro a que veneravam, regressasse ao seu maior esplendor). Mais: tal como fazem os maometanos, oravam cinco vezes ao dia voltados para um local que, do ponto de vista geográfico, estaria bem perto da real Meca e, assim, da tenda com ídolos pagãos que, aí estando, foi substituída, depois de suprimidas tais imagens, por uma construção cúbica que guarda(va) um meteorito que continuou a ser venerado até aos nossos dias.
Já outras tribos pagãs, mais ou menos próximas do ponto de vista religioso das supraditas e vivendo no centro-oeste e no centro-noroeste da Península Arábica (e que também seguiam um calendário daqueloutra natureza), tinham o hábito de, tal como fazem os seguidores do islão, não comerem durante 30 dias. Mas não só: desde há séculos, e até aos nossos dias (tal como é pedido, por exemplo, em Corão 2, 158), estes seguidores, que realizam a ida a Meca durante o Ramadão, passam sete vezes por entre duas “montanhas”. E isto é, novamente, algo que aquelas indicadas tribos realizavam, conforme se pode ler em Sahih Bukhari 2, 26, 710.
A estes factos mais axiais, pode somar-se ainda outras práticas originalmente pagãs associadas ao Ramadão, como, nomeadamente: a circumambulação; o atirar pedras a ídolos malévolos (representações de divindades de outras tribos pagãs derrotadas anteriormente); o estar num espírito de “ihram” e usar aquilo que, por metonímia, também se chama “ihram” (a veste branca que, cobrindo todo o corpo, deve ser o único vestuário usado nessa circunstância); bem como, para não se prolongar estes paralelismos, a abstenção de qualquer tipo de relações sexuais (tidas como muito impuras nessa ocasião, com a exceção — que eu saiba — de alguém ver uma pessoa e, fantasiando estar a ter relações sexuais com esta, chegar ao orgasmo).
Como é evidente, nada disto faz do Ramadão uma prática pagã. Depois da aludida maometização, o que conta é a intenção com que se realizam essas atitudes e comportamentos que já existiam antes dessa adaptação. O mesmo acontece(u) com todas as demais religiões, que, de uma forma ou de outra, contactaram com, e assumiram crítica e purificadamente (segundo as suas “teologias”), práticas de outras religiões precedentes. Sim: o referente e o símbolo podem ser idênticos, mas o referido e o simbolizado variam.
Delicado é, seja quando não se admite isto, seja quando se o ignora, seja quando se quer, por vezes à força, fazê-lo ignorar (como se a verdade pudesse ser sempre ocultada de todos e em todos os locais e em todo e qualquer tempo). Nenhuma religião verdadeira tem medo da verdade e se tiver, de religião nada terá, pois o que é a religião senão um caminho, mais ou menos direto e desejado pela Verdade, para Esta (a qual, no Cristianismo e só neste, é o Deus-Amor)?
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