As complexidades do 13 de maio

As complexidades do 13 de maio

Dizer que o 13 de maio, enquanto focado nos eventos de Fátima, é uma realidade intrincada, é simultaneamente dizer tudo e nada dizer. Mas a verdade é que, desde essa perspetiva (não tão cronológica quanto se poderia pensar), essa data é genuinamente complexa, pois existe e subsiste “com rugas” (do latim com [com] + plexum [rugas] = complexum). Imensas rugas. Não de velhice, mas de corações. Tantas rugas quantas as pessoas que lá se dirigem e que de lá regressam. Tantas rugas quantas as pessoas que, embora lá não se desloquem, olham, com desdém e/ou fascínio, para o que se (diz que se) vive lá. Tantas rugas quantas as sensibilidades sociológicas, teológicas, psicológicas, espirituais e – para não se estar a alargar em demasia este elenco – políticas e económicas que olham para tal realidade com desinteresse ou interesse (ego-referente ou alo-referente).

Mas o que é que faz as pessoas quererem ir a Fátima num 13 de maio?

O que faz as pessoas desejarem ir, nesse dia, ao que, com humildade mal disfarçada, alguém denominou de “Altar do Mundo”? Nem a mais rigorosa indagação sociológica nos daria respostas totalmente satisfatórias, pois nenhum inquérito dessa natureza tocaria no mais profundo alfabeto das motivações. Será que se deslocam até lá devido: à celebração dos eventos que se acredita que ocorreram nesse local há pouco mais de um século? À fé num Deus maior do que isso? Ao medo de um deus menor do que isso? À curiosidade sã e/ou malsã? Ao desejo de viverem o que os outros dizem que lá vive(ra)m? Ao regresso ao contacto com uma existência arcaica e/ou primordial de reconhecimento da condição peregrina do ser humano? À constatação de que todos podem lá encontrar uma casa – essa palavra que, por mais que não o queiramos admitir, possui um poder extraordinário – que ainda não conhecem? À vontade de respirarem (n)um local onde o diafragma entre, por um lado, a esfera do divino e, por outro lado, a esfera do profano foi rasgado por uma hérnia celeste? Ao desejo de serem vistos e socialmente aceites? A uma vivência espiritual com maior ou menor densidade e veracidade? Possivelmente nada disto, tomado de modo isolado, toque de tangente no capital do aduzido alfabeto, mas, com maior probabilidade, também nada disso tomado em conjunto o logrará fazer. Cada um o saberá. Contudo, o facto é que para lá convergem, e lá se reúnem, sempre que lhes é oportuno, possível e conveniente.

Fátima é um funil de duplo uso: no sentido do diâmetro maior para o menor, ela estreita e condensa – mas sem limitar – os sentidos, as mentes, as preocupações e os desejos de futuras ocupações; já no sentido inverso, ela amplia e dispersa – mas sem rarefazer – tudo isso. É de uma força incomensurável o magma emocional e verbal que é capitalizado em cada uma das grandes celebrações de Fátima – das quais as de 13 de maio são paradigmáticas. Provavelmente nem todos saberão assimilar o que lá experienciam e, dessa forma, isso poderá tornar-se uma barreira cerrada entre a sua consciência e a sua autenticidade. Sejamos francos: quem é que, aquém ou além dos fenómenos mais percetíveis que lá se podem vislumbrar, conhece o que foi, é e deveria ser o essencial de Fátima? Será que Fátima serve: para Fátima? Para quem lá vai? Para as congregações religiosas que surgiram a partir do que lá se afirma que ocorreu? Para Portugal? Para a Igreja Católica? Para o Cristianismo? Para a humanidade? 

Se o poder – o absolutamente único poder – que a autenticidade de Fátima pode reclamar para si, é o de poder servir, então, é decisivo reconhecer que não se pode ignorar nem desvalorizar, seja as questões supramencionadas, seja qualquer outra que as possa sintetizar. Nem elas, nem a(s) resposta(s) que delas porventura resultar(em), podem ser descartadas por receio do que podem acarretar. O amor, que é a chave-nuclear de tudo o que é essencial para o ser humano – a liberdade, a dignidade, o sentido, o valor, a felicidade – requer verdade e transparência. Por outras palavras: exige franqueza. Felizmente que Fátima, embora dentro dos seus compreensíveis condicionalismos específicos, não se quer furtar a esta evidência.

É incontestável que tal franqueza será, imediata e igualmente, fraqueza: vulnerabilidade e fragilidade.

Habitualmente, e devido à nossa humana debilidade – que tão deseja quão receia o amor e as suas consequências –, tudo isto atemoriza e intimida. Não obstante, e ao mesmo tempo, todos podem reconhecer que Fátima, sem isso, pouco ou nenhum relevo terá. Ocorre que, quando se deixa despontar tal franqueza, cada 13 de maio converte-se num hino à relevância que Fátima possui enquanto ostensório da fragilidade da humanidade. Uma fragilidade patenteada: nos rostos burilados pela dor e/ou pela alegria; nas lágrimas de aflição e/ou de alívio; nas feridas autoinfligidas e/ou involuntárias; na humildade e/ou na ostentação; nas discrepâncias e/ou coerências; nas pequenas e/ou grandes (auto)idolatrias; nos corações rasgados e/ou sanados. Uma fraqueza, pois, de uma humanidade afastada e perdida de si mesma, porquanto escravizada pelos, e nos, seus limites mais superficiais. Uma humanidade que busca um rumo que, se acabar por reconhecer como também sendo endógeno a ela mesma, a poderá libertar de si para um sempre maior, mais belo e mais alegre patamar de existência. Talvez seja isto mesmo o que cada 13 de maio pode trazer de melhor: o ser espelho de uma humanidade que lá se encontra, não por ser exemplar, mas precisamente por não o ser. Eis, na verdade, o que lá se pode vislumbrar quando se tem olhos repletos, não da ingenuidade que se maravilha quando se diz que está a chover de baixo para cima, mas, isso sim, da inocência que se fascina quando se vê a chover de cima para baixo. Eis o que conduz ao anteriormente apontado desdém e/ou fascínio.

A valia de Fátima deriva dela ser o datilograma do que todos nós somos: fraqueza que sonha com franqueza e, conjuntamente, franqueza definitivamente ilusória sem que a fraqueza seja aceite. Tal valia não se encontra, pois, na pompa das vedetas que presidem às celebrações, as quais, frequentemente, se refugiam em esboços pálidos da espiritualidade que mal conhecem. Não se encontra, sequer, nas palavras que, na maior parte das vezes, são esquecidas logo que são proferidas – se é que são entendidas. Não é, muito menos, a serenidade emocional que se (diz que) lá se pode encontrar, a qual, quando desprovida de racionalidade, só nutre todos os paganismos híbridos de ontem e de amanhã. Quer queiramos, quer não, Fátima somos todos nós – mesmo os que nunca dela ouvimos falar.

Autor | Alexandre Freire Duarte - Docente e Investigador de teologia na Universidade Católica Portuguesa.

Fotografia de capa | Couleur