Festas dos Santos populares têm origens pagãs
Festas dos Santos populares têm origens pagãs

Festas dos Santos populares têm origens pagãs

Nos altares dos Santos a Concorrência é feroz e a culpa é dos Crentes...e da Época do Ano.

Perdem-se na raiz dos tempos as festas que coincidem com as datas em que hoje celebramos Santo António, São João e São Pedro. Influenciados pela passagem das estações, os celtas realizavam festivais associados à época das sementeiras e das colheitas, com o meio do inverno, com o alto do verão. Quando o Cristianismo se institucionalizou por toda a Europa, a Igreja “alterou o chip” dessas celebrações para exultações hagiográficas.

É comum lisboetas e portuenses confundirem os Santos Populares das suas respetivas cidades com os padroeiros de cada um dos burgos: Nem S. António é patrono de Lisboa, nem S. João o do Porto.

À capital o padroado encontra-se atribuído a S. Vicente, por ordem de D. Afonso Henriques, desde 1173. Foi uma promessa que o “Conquistador” comprometeu-se a cumprir caso conquistasse Lisboa aos muçulmanos.

A hagiografia fala-nos de S. Vicente de Huesca, diácono da antiga “Cesar Augusta” (atual cidade de Saragoça), martirizado à mercê da perseguição aos cristãos, encetada pelo imperador Diocleciano. Já a lenda escreve que os restos mortais terão sido transportados para Sagres ao tempo das invasões muçulmanas, no séc. VIII.

Sabendo da existência das relíquias do santo no lugar que já se chamou de “Promuntorium Sacrum”, o primeiro rei jurou trasladar as relíquias para a recém-conquistada Lisboa, com a tradição a contar, de pais para filhos e de filhos para netos, que a barca que transportou Vicente para a antiga Lixbûnã moura foi escoltada por dois corvos, que mais tarde seriam recordados, juntamente com a escalera, no brasão de armas da cidade.

Contudo, o que poucos sabem é que, afinal, o primeiro padroeiro da capital terá sido S. Crispim. Afonso Henriques, em 1147, haveria de vergar, cinco meses depois de iniciado o cerco, as defesas da cidade, a 25 de outubro, precisamente no dia litúrgico do mártir romano (irmão de S. Crispiano). Mas a realidade é que o culto a S. Vicente era já muito forte entre as muralhas, por essa razão durou pouco o “mandato” do santo de Soissons.

Mas se em Lisboa, o assunto “padroeiro” fala-nos em duas personagens históricas, no que ao Porto diz respeito então a história e a lenda são bem mais rebuscadas, ao ponto da tradição nos falar que, antes de S. Vicente habitar a cidade à beira-Tejo, foi no burgo banhado pelo Douro que o mártir encontrou refúgio pós-Sagres.

O conhecido historiador Germano Silva fala-nos de que naquele tempo, no séc. XII todos os assuntos eclesiásticos e da esfera dos milagres deveriam passar sempre pelo altar primaz das Espanhas: Braga. A tradição oral, tão intemporal como duvidosa, refere que as relíquias de S. Vicente, a caminho da cidade dos Arcebispos, terão ido parado originalmente à “Invicta” por teimosia da mula que puxava o veículo que, por obra e graça, insistiu em “visitar” a Sé portucalense e aí encontrar o seu eterno descanso. Atribuído o desejo da besta a um desígnio divino, a urna do Santo repousou inicialmente no Porto antes de rumar a Lisboa, tornando-se, por devoção popular, no primeiro padroeiro dos tripeiros.

Mas o assunto “orago portucalensis” não fica por aqui: o Porto não conheceu apenas um padroeiro, mas ao longo da história, conheceu três e nenhum deles é S. João. Se S. Vicente foi o primeiro padroeiro, a partir do séc. XVI foi destituído do cargo por S. Pantaleão de Nicomédia.

Uma vez mais um relato pleno de contornos milagreiros, com os costumes falados a contar-nos a crónica de que, em 1453, um grupo de arménios, fugidos de uma Constantinopla acabada de cair em mãos otomanas, terá aportado em Miragaia com as relíquias do santo patrono dos médicos, numa altura em que a cidade se encontrava assolada por vários surtos de peste e que, por via milagrosa, no momento em que as relíquias alcançaram o areal, um dos surtos terá subitamente eclipsado. Tal foi o impacto do prodígio que a pequena ermida, construída em honra do santo, motivou dinâmica peregrinação, ao ponto de em 1483, D. João II a ter visitado.

Mas foi em 1502, já as relíquias de S. Pantaleão se encontravam na Sé (à exceção de um osso de um braço que terá sido mantido em Miragaia, num relicário de prata), que o médico arménio se tornou o padroeiro de facto da cidade, quando D. Manuel, em peregrinação a Santiago de Compostela, se desloca à catedral para venerar as relíquias.

O cargo de S. Pantaleão durou bem mais do que o de S. Vicente, mas mesmo assim, quase volvidos cinco séculos, viu-se também “demitido”, com o lugar a ser ocupado, a partir de 1964, por ordem do bispo D. António Ferreira Gomes, por Nossa Senhora da Vandoma. De origem medieval, a evocação mariana faz-nos recuar até ao séc. X, quando D. Múnio Viegas, importante senhor das terras de Entre Douro e Minho, pediu o auxílio a cavaleiros gascões na luta contra as hostes mouras.

Quando o exército vindo de França chegou ao Porto, a acompanhá-los vinha D. Nónego, bispo da cidade de Vandôme, que terá oferecido uma imagem de Nossa Senhora, que viria a ser colocada num nicho de uma das portas da antiga muralha do burgo, construída junto a sé, porta essa que a partir daí se chamaria da Vandoma (e que ainda hoje dá nome a uma celebre feira tripeira de “quinquilharias”). Civitas Virginis muitos chamariam ao Porto a partir de 997. Padroado tornado oficial em 1981, vigora ainda hoje no brasão de armas da cidade, assim como no da diocese portucalense.

Mas então porquê esta “concorrência” entre os “santos populares” e padroeiros? Simples: por causa da época do ano em que se celebra o dia litúrgico de uns e outros.

S. Vicente de Lisboa celebra-se a 22 de janeiro, ao passo que Nossa Senhora da Vandoma do Porto comemora-se a 11 de outubro, ou seja, ambos realizam-se em épocas onde o clima habitualmente não é propício a folias. Já as datas dos Santos Populares festejam-se em época mais oportuna, período em que já desde tempos imemoriais viam os celtas e outros povos pré-romanos celebrarem com vinho e fogueiras gigantes o tempo das colheitas, a temporada da abundância, o verão.

Quando a igreja Católica ganhou forma de poder, os antigos cultos à natureza e à passagem das estações deram lugar à glorificação da vida dos santos. Foi assim com o franciscano Santo António de Lisboa (ou de Pádua), com São João Batista e com o apóstolo São Pedro.

Cedo estas personagens universais cristãs foram objeto de grande devoção. Santo António como casamenteiro e padroeiro de comerciantes e ladrões, São João Batista (que se celebra precisamente no tempo do solstício de Verão) o primeiro mártir do cristianismo e São Pedro como “pai” da igreja.

Refira-se, a título de curiosidade, que quando o novo regime republicano instituiu, em 1911, os feriados municipais, Lisboa logo abraçou 13 de junho, ao passo que no Porto foi até necessário um referendo (levado a cabo pelo Jornal de Notícias entre 21 de janeiro e dois de fevereiro) para escolher o dia mais importante da cidade, com a vitória a cair para 24 de junho, em detrimento do Dia do Trabalhador ou do Corpo de Deus.

Mas ainda hoje, volvidos tantos anos, os efeitos da rivalidade entre santos ainda se sentem nas duas principais cidades portuguesas, com os padroeiros a reclamarem, através das suas confrarias, maior atenção por parte dos crentes e das autoridades. 

Já São Pedro não se meteu nessas confusões. O apóstolo cimeiro foi sempre o orago das localidades onde é também santo popular, com destaque para Évora, Porto de Mós, Sintra, Póvoa de Varzim, S. Pedro do Sul ou ainda na freguesia da cidade de Vila Nova de Gaia, com a sua festa a cotar-se como uma das mais efusivas do país: S. Pedro da Afurada.

Autor | Artur Filipe dos Santos, doutorado em Comunicação e Património pela Universidade de Vigo, é professor universitário e investigador no ISLA-Instituto Politécnico de Gestão e Tecnologia e membro do ICOMOS - International Council of Monuments and Sites. Especialista do património cultural e dos Caminhos de Santiago, é o autor do blogue “O Meu Caminho de Santiago” e autor de vários artigos e palestras sobre a tradição jacobeia.