Há Saúde na Doença

Há Saúde na Doença

Como já referimos em artigos anteriores, Saúde há só uma, é toda e por inteiro. Ela inclui o ser humano na sua unidade e totalidade. Ainda que possua várias dimensões, a física, a psíquica, a biológica, a social e a espiritual, apenas ganha sentido integrador na sua totalidade.

A saúde desenrola-se num processo complexo, dinâmico e dialético de equilíbrio instável devido a uma quantidade enorme de fatores e variáveis nos quais está implicada. Paradoxalmente não existe saúde sem doença, o mesmo é dizer que saúde e a doença fazem parte de uma mesma roda de vida. No campo da saúde mental falamos do mesmo, consideremos mais em particular a saúde, o mental e a pessoa.

Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, apresentou-nos uma conceção bastante original daquilo a que podemos falar de saúde mental, autor que trazemos para cena e com o qual dialogaremos neste artigo.

Winnicott concebe saúde mental do seguinte modo: “saúde mental é capacidade de produzir (ação) e fruir a vida de acordo com as condições existentes numa dada ocasião.” Ele basicamente nos diz que se formos capazes de produzir, ou seja agir, e fruir, gozar a vida de acordo com as condições existentes numa dada ocasião podemos afirmar que possuímos saúde, saúde psíquica. É o mesmo que dizer que um forte núcleo de saúde está ativo em nós. Quando assim é, mostramo-nos capazes de ir além das condicionantes que vida nos traz.

Apesar deste potencial de saúde, as teorias psicológicas e psicoterapêuticas nas suas origens focaram-se mais no lado patológico, na face doentia do “rosto humano”, esquecendo a outra face, a saúde. Tendeu-se a pensar a pessoa a partir da doença, em detrimento da relação existente entre estas duas dimensões.

Com o movimento da apelidada revolução humanista que ocorreu essencialmente entre o final da década de 30 e 60 do século passado, a pessoa, o seu potencial, os seus núcleos saudáveis passaram a ser o centro de atuação e teorização da psicologia e psicoterapia. No meio psicanalítico, vários autores vieram acrescentar outras perspetivas em relação às premissas da psicanálise clássica fundada por Sigmund Freud, nomes como Wilhelm Reich, Sandor Ferenzi, Erich Fromm, Otto Rank, Karen Horney e Fritz Perls, entre outros, foram decisivos para ampliar as dimensões que viriam a permitir uma compreensão e atuação mais ampla sobre o ser humano, trazendo contribuições mais culturalistas e sociais, com foco numa atuação mais ativa por parte dos psicoterapeutas, valorizando a vontade, o poder da vontade da pessoa que procura ajuda, assim como na atenção prestada aos processos autorreguladores do organismo. O foco da terapia deixou de ser “apenas a palavra”, embora não fosse tarefa pequena, para ser pessoa por inteiro, e essencialmente a pessoa saudável, vindo estes autores a ter um papel decisivo na inspiração do movimento Humanista e Existencial nos EUA.

Mais tarde, no seio do grupo inglês de psicanálise, Winnicott trouxe novidades inovadoras para este campo. Winnicott, apresenta-nos uma teoria do desenvolvimento emocional e do amadurecimento humano, com foco numa base relacional e maturacional que vale a pena ter em consideração para uma compreensão mais ampla daquilo que é saúde mental. Ele afirmava que: “é muito mais difícil lidar com a saúde do que com a doença. Na saúde o sujeito vive a experiência de que a vida vale a pena ser vivida.”

Em Winnicott o foco passa a ser a possibilidade de no consultório e fora dele se criarem bases para o desenvolvimento da esperança e da confiança. Para a partir daí, com sentimentos e experiências promotores de saúde, esses possam ser as forças propulsoras para as mudanças possíveis. Com o intuito de desimpedir aquilo que tinha ficado bloqueado, aquilo que se tinha desviado, ou ficado paralisado no processo de desenvolvimento da pessoa, para que esta pudesse vir a ser o que realmente é, no fundo, para que pudesse ser e continuar sendo.

Winnicott afirma que tendemos a ver a saúde como a ausência de sintomas, como a ausência de doença, atitude esta ainda fortemente enraizada nos dias de hoje. Algo que o autor não aconselha, referindo que não é indicado pensar em saúde como ausência de determinados fenómenos. O esforço de Winnicott foi no sentido de descrever saúde em termos positivos. Como a presença clínica no indivíduo de determinadas conquistas maturacionais.

Neste sentido saúde psíquica não corresponde à ausência de aspetos adoecidos, sintomas, ansiedades, defesas, conflitos, sofrimentos e saúde, não é simplesmente a ausência disso.

Para Winnicott a vida é iminentemente difícil e no indivíduo relativamente saudável encontramos variados sintomas, defesas e ansiedades. Dentro da perspetiva Winnicottiana a Saúde psíquica incluiu variados atributos, entre os quais se destacam:

Riqueza na realidade psíquica interna; flexibilidade, maleabilidade na organização das defesas.

Nos mais saudáveis os sintomas são menos monótonos, têm frequentemente a capacidade para brincar e permitem-se aceder a experiências culturais.

Possuem a capacidade para a ambivalência, para tolerá-la e suportá-la.

Têm a capacidade de sentir culpa e efetuar reparações.

Possuem uma certa capacidade de humor, o que traz uma certa leveza à vida, apesar de esta ser dura, às vezes duríssima, no entanto apesar disso, vale a pena ser vivida. São capazes de esperar e confiar.

Neste sentido, a Incapacidade de liberdade e submissão estão associados à doença ou aquilo que a origina. Pelo contrário, a capacidade criativa através do gesto livre e espontâneo do movimento de vida da criança que se prolonga na pessoa do adulto estão associados à saúde.

Para Winnicott a sua noção de saúde, “está ligada à maturidade, e não à inexistência de sintomas”. O nosso autor considera que é necessário ter em conta o contexto em que o processo de amadurecimento emocional da criança se desenvolve e ter em linha de conta a realidade em que está inserida, assim como aos graus e modos da manifestação sintomática, realidades que são marcos fundamentais para o diagnóstico e compreensão do que é normal ou patológico.

Neste âmbito, Winnicott, está em afinidade com o movimento humanista que preconiza as potencialidades do ser humano, e a sua tendência atualizante conforme defendido por Carl Rogers, Winnicott preconiza uma tendência inata ao crescimento, tanto física quanto emocional da criança. Tendência que a impele para frente, envolvendo necessidades e vivências emocionais cambiantes, correspondentes a cada etapa em direção à construção e estabilização paulatina de sua personalidade.

As forças no sentido da vida, da integração da personalidade e da independência são tremendamente fortes, e com condições suficientemente boas a criança progride; quando as condições não são suficientemente boas essas forças ficam contidas dentro da criança e de uma forma ou de outra tendem a destruí-la. O nosso autor confere à proposta existencial da necessidade de ser e continuar sendo um crivo norteador sobre a classificação do que é saúde ou do que anuncia a doença. Para o nosso autor “a continuidade [na sua possibilidade] de ser significa a saúde”.

A bem da saúde mental presente e futura, saibamos acompanhar as nossas crianças, não lhes atrapalhando o caminho de vida, não contendo o gesto espontâneo, pois o gesto é aquilo que gesta (Guto Pompeia) e possibilita a criação.


Sugestões de leitura |
Holanda, A. F. (2014). Fenomenologia e humanismo: reflexões necessárias. Curitiba: Juruá.
Pompeia, J. A., & Sapienza, B. T. (2011). Os dois nascimentos do homem: escritos sobre terapia e educação na era da técnica. Rio de Janeiro: Via Verita.
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago. 
Pondé, DZF. (2018). Emoções e sentimentos em Winnicott. (Tese doutoramento), UNICAMP.

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