
Um Universo que Canta: o Retorno ao Mito
Joseph Campbell um dos maiores mitólogos de sempre, legou-nos uma interpretação da mitologia de fundo simbólico e psicológico. O Mito não é uma “mentira”, mas uma narrativa simbólica acerca do mistério da vida e de estar vivo. Num mundo desencantado como o que vivemos na atualidade, onde predomina o culto do imediato, da imagem do próprio como sombra, não como um reflexo do que verdadeiramente se é, num mundo onde a mentira ganhou terreno à verdade, onde o Homem se perde e pulveriza a sua humanidade em jogos de guerra, quando assim é, se não olhamos para trás, para saber de onde vimos, se não olhamos para dentro onde nos podemos sentir, se não olhamos para o outro onde nos podemos reconhecer em mutua reciprocidade, perdemo-nos.
É necessário ir lá atrás, ao Mito, para de algum modo recuperar o sentido e significado do destino da humanidade e daquilo que é ser humano. O mito é uma narrativa, não uma narrativa qualquer, mas a história de todos nós, uma história dos primórdios, das origens. É uma história da Aurora da humanidade.
Inspirado nas obras de Freud e Jung, Joseph Campbell chegou a afirmar que os mitos são uma forma de o ser humano exteriorizar o seu inconsciente, tentando por meio deles, encontrar respostas para questões universais que o perseguem desde o seu nascimento.
Questões fundamentais como: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou quando morrer? O que é o bem e o que é o mal? Como será o futuro? O que aconteceu no passado? Deus existe? O que é a morte?
“O Ahura, diz-me a verdade. Quem fixou a terra em baixo e as nuvens no céu? Quem criou as águas e as plantas? Quem atrelou ao vento as nuvens tempestuosas de passo rápido? Quem é então o sábio criador que inspira às nossas almas os bons pensamentos?”
(Yasma, mitologia persa).
Os mitos alimentam nossa alma, são elementos que nos dão força para continuar a viver, eles são possuidores de forças de esperança, uma forma de lidar com medos e desejos, uma maneira de nos entendermos a nós mesmos e à nossa realidade.
Como afirma a historiadora norte-americana Karen Armstrong, no mundo pré-moderno, as pessoas em geral davam-se conta de que mito e razão complementavam-se. Cada um existia numa esfera distinta, cada um tinha a sua área de competência específica, e os seres humanos necessitavam desses dois modos de pensamento. Afirma a autora citada:
“um mito não explicava ao caçador como matar uma presa, nem ensinava a organizar uma expedição bem-sucedida, mas ajudava-o a lidar com as emoções complicadas ligadas à matança de animais. O logos era eficiente, prático e racional, mas não conseguia responder a questões relativas ao valor último da vida humana, nem mitigava dor e sofrimento”.
Prossegue:
“Desde o princípio, portanto, o homo sapiens compreendeu instintivamente que o mito e o logos tinham tarefas diferentes a desempenhar. Usou o logos para aprimorar armamentos, e o mito, com seus consequentes rituais, para se reconciliar com fatos trágicos da vida que ameaçavam sufocá-lo e o impediam de agir com eficiência”.
Para Joseph Campbell a mitologia é o canto do Universo, a música das esferas: “música que dançamos, mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia”.
A que se refere?
Campbell refere-se ao caráter inconsciente e arquetípico do mito, pois embora a compreensão mítica seja considerada erroneamente como um estágio ultrapassado da explicação do mundo, ela faz parte do nosso acervo inconsciente e continua atuando a partir dele.
Para Campbell, todos os homens, independentemente da cultura à qual pertençam fazem parte desse imenso coro que começou quando os homens começaram a contar histórias sobre os mistérios da vida. Somos essencialmente contadores de histórias, as narrativas dão colorido e tonalidade afetiva singular às nossas vivências mais íntimas. Singular, mas prenha da força vital do coletivo que existe em nós. Eu sou eu e todos os Outros que em mim habitam, Eu sou Eu e todos os Outros com quem me relaciono. Trazemos a humanidade cá por dentro.
Campbell, afirmava que todas as narrativas, conscientes ou não, surgem de antigos padrões do mito, ou seja, os mitos fornecem a matéria-prima para a grande maioria das histórias contadas pela humanidade, pois o mito capta a vida no seu eterno fluir.
Os mitos estão unidos à formação psíquica da nossa personalidade, da nossa pessoa. De maneira impercetível os relatos da nossa comunidade de pertença, a humanidade, deram forma aos traços que consideramos como nossos valores.
Como afirma o investigador espanhol Oscar Enrique Muñoz, descobrimos aquilo que nos é próprio, ao escutar e pensar num relato mítico identificando-nos com algum dos personagens, inventamos uma identidade pessoal, fazemo-lo a partir das narrativas que nos oferecem os grupos aos quais pertencemos, fazemo-lo numa ação de imitação que nos dá forma através da sua espontânea ação. Mito e poesia andam de mãos dadas, talvez fosse por isso que Pessoa afirmava que “o Mito é o nada que é tudo”, nada que tudo forja, cria e recria.
Sugestões de Leitura |
• Armstrong, K. (2006). Breve historia del mito. Ediciones Salamandra.
• Campbell, J. (2021). En busca de la felicidad: mitología y transformación personal. Editorial Kairós.
• Morin, E. (2017). Introdução ao Pensamento Complexo. Edições Piaget.
• Muñoz, O. E. (2013). Mitopoética: La Construcción Simbólica de la Identidad Humana. Oscar E. Muñoz.
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