
Raízes Culturais do Natal em Portugal
Portugal é predominantemente católico e os portugueses seguem a maioria das tradições da Igreja Católica Ocidental. Pode ser pequeno em quilómetros, mas é grande em tradições e receitas, sobretudo as que estão relacionadas com quadras festivas. A gastronomia portuguesa é rica e cheia de sabores e isso reflete-se, principalmente, nas alturas de festa, como é o caso das tradições de Natal.
Se pudéssemos percorrer o país de norte a sul na altura do Natal (ilhas incluídas) íamos certamente ter a mais rica experiência gastronómica da nossa vida e, ao mesmo tempo, viajar pelo tempo e pela história, em direção aos mais profundos exemplos da intemporalidade cultural, construídos pelos vários povos que fizeram do atual território português a sua “casa”, na altura de celebrarem a vitória da luz sobre as trevas, o regresso dos dias maiores, o triunfo do sol, o caminho até ao fim do inverno.
Cada região tem as suas tradições, o seu modo de fazer as coisas, os seus ingredientes típicos, bem como os seus segredos culinários, com o Natal a ser celebrado de diferentes formas dependendo da região ou até mesmo do seio familiar em questão, pois cada um opta por passar a noite de consoada e o dia de Natal da forma que preferir. Nalgumas regiões, por exemplo, como em Bragança, Guarda ou Castelo Branco, ainda se queima um madeiro durante a noite, numa grande fogueira no adro da Igreja, servindo de ponto de encontro para reunir amigos e vizinhos e desejar um Feliz Natal, manifestações que nos transportam para a herança celta do norte do país e da Galiza. Dessa mesma emanação cultural deixada pelos povos castrejos e que hoje se mantêm importa referir ainda as tradicionais “Festas dos Rapazes” ainda hoje protagonizadas pelos Caretos da Varge e de Ousilhão, nas frias terras de Bragança. Entre os dias 24 e 26 de dezembro, dezenas de rapazes vestidos com trajes coloridos, máscaras de madeira e chocalhos pendurados à cintura (em muito semelhante à tradição carnavalesca dos caretos de Podence) dançam ao astro-rei que começa a fortalecer-se precisamente a partir do dia 25.
Outro exemplo quase tão antigo como a história transmontana é a tradição do “Chocalheiro da Bemposta”, que une manifestações pagãs, cristãs e profanas, com o diabo a sair à rua vestido de negro, uma máscara escarlate e preta com dois chifres, uma laranja espetada em cada chifre e ainda uma barbicha. Esta tradição nasce de uma lenda que, segundo a qual o demónio tentou seduzir Nossa Senhora quando estava “de esperanças”, a aguardar o nascimento do Menino, e, por castigo, foi condenado a pedir esmola para ela e para seu filho. Com os ruidosos chocalhos, para melhor se fazer anunciar à passagem, o Chocalheiro sai à rua em duas ocasiões: no dia 26 (para pedir esmola para Nossa Senhora) e no dia um de janeiro (para pedir esmola, desta feita, para o Menino).
Outra tradição que à partida nos parece inusitada em tempos natalícios é o “Magusto da Velha”, que todos os anos se celebra em Aldeia Viçosa, a poucos quilómetros da Guarda. A lenda diz que uma rica senhora da aldeia terá doado as suas terras à paróquia. Como contrapartida terá exigido que a população se juntasse por alturas do Natal para rezar um Pai-Nosso” em memória da benemérita e se oferecesse 150 quilos de castanhas que seriam arremessados do alto do campanário da igreja.
E se no Natal se celebra o nascimento de Jesus, em algumas terras do Barroso há quem comemore também a morte. Antes de iniciarem o repasto da consoada, os habitantes de muitas da aldeia do planalto das terras de Montalegre rezam pelas almas de cada um dos familiares falecidos, como que a convocarem os seus espíritos para se unirem aos vivos na ceia sagrada.
Também abençoadas pelo tempo, foquemo-nos em algumas tradições que se vivem em terras arcebispais. Ainda hoje são muitas as famílias mais conservadoras de Braga que lançam para a lareira o “Canhoto Natal”, um tronco de madeira que arde no fogo, ao mesmo tempo que vivem a consoada, à espera de beijar o Menino na Missa do Galo.
Mas se muitas dessas tradições milenares foram resgatadas do baú do tempo, outras há que nasceram em tempos mais recentes como por exemplo o costume das gentes da cidade de Braga se deslocarem em alegre euforia à conhecida taberna “Casa das Bananas”, na tarde do dia 24, para comer bananas e beber moscatel ao som de gaitas-de-foles. Ou a construção do magnífico presépio vivo de Priscos, uma iniciativa lançada pelo atual pároco desta aldeia minhota, o padre João Torres.
Ainda falando de tradições recentes, destaque para os mercados de Natal que agora povoam muitas das cidades, vilas e até aldeias portuguesas, onde merecem destaque a “Vila-Natal” de Óbidos ou a Aldeia de Natal de Cabeça, no concelho de Seia, um lugar onde “o Pai Natal não entra”, e em que a decoração das casas é feita à base de “matérias da natureza”, vindas das limpezas dos terrenos do parque natural da Serra da Estrela. Uma iniciativa ecológica que vai já na 9ª edição.
E se os costumes, mais antigos ou mais recentes, espelham a impressão digital deixada pelos povos nesta ponta ocidental da Península Ibérica, muitas das iguarias que servimos à mesa na consoada ou no almoço de Natal, têm a sua origem muito além do nosso território. Então vejamos; a típica aletria (que em alguns lugares se serve cremosa, noutras temos de cortar à faca) é um prato de origem árabe, assim como o arroz-doce; as rabanadas (conhecidas a sul do Mondego como “Fatias Douradas”) são de origem espanhola, mais concretamente de Madrid, confecionadas para fortalecer as mulheres que tinham acabado de dar à luz. Por essa razão, ainda hoje são conhecidas como “pão de parida”; os formigos têm origem romana; o bolo-rei é gaulês, da época de Luís XIV (e que viu o seu nome mudar para “gâteau de Sans-Cullottes” na altura da Revolução Francesa). Até o tradicional bacalhau terá sido introduzido na ementa por grupos de comerciantes bascos que espalharam pelo norte da península esta iguaria de origem viquingue.
Das poucas tradições gastronómicas originais portuguesas encontramos as filhós, uma receita tão antiga que até Gil Vicente (séc. XVI) escreveu:
“Mando-vos eu sospirar pola padeira d’Aveiro que haveis de chegar à venda e entam ali desalbardar e albardar o vendeiro senam tever que nos venda vinho a seis, cabra a três pão de calo, filhós de manteiga moça fermosa...”.