Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis: Tesouros Escondidos de Portugal
Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis: onde o Norte se despede e o Centro convida...
São dois municípios que não vigoram, à partida, num almanaque turístico de Portugal, mas o nosso país é assim, com tesouros escondidos, ocultos aos mais desinformados, mas prontos a serem descobertos pelos mais intrépidos viajantes, amantes das coisas simples.
Entre a respiração húmida das serras e o sussurro secreto dos vales, erguem-se terras onde o tempo demora a passar, entre as neblinas dos vales e as nuvens altas que, muitas vezes, cobrem a Serra da Freita. Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis encontram-se marcadas no mapa, mas raramente dá-se por elas, vivendo assim como páginas abertas de um manuscrito esquecido, onde cada pedra, cada árvore e cada rosto guarda contudo um capítulo de história das gentes que preferiram refugiar-se neste território onde o Norte dá lugar ao Centro. Aqui, o silêncio sabe a musgo e a granito, e o som da água nos rios é tão antigo quanto a memória que a montanha conserva. São vizinhas de fronteira invisível, ligadas por um fio de tradições, aromas e caminhos, e é nesse fio que o viajante, fiel ao princípio da descoberta, explora a natureza e o património simples, mas pulsante destes lugares.
Comecemos por Vale de Cambra, que se assume logo com um anfiteatro natural, vale delimitado pela imponente Serra da Freita, geoparque mundial da UNESCO, a tal das pedras parideiras e da Frecha da Mizarela. O rio Caima, ora caprichoso, ora sereno, lapida a paisagem, moldando-a com serpenteados até se encontrar com o Rio Vouga, para juntos alcançarem o mar na Ria de Aveiro.

Museu municipal de Vale de Cambra | Fotografias de Artur Filipe dos Santos
Vale de Cambra é cidade desde 1993, mas as suas origens documentadas remontam a 1514, quando D. Manuel I concedeu foral às terras de Cambra. Entre os seus monumentos de relevo destacam-se o Cruzeiro de Roge (1762) e o Pelourinho de Macieira de Cambra, do final do século XVI, ambos testemunhos pétreos de identidade e justiça. É nesta freguesia, que foi sede da edilidade até 1926, que se encontra, nos antigos paços do Concelho, o Museu Municipal, inaugurado a 18 de maio de 1926. Neste espaço é possível conhecer as pegadas que o tempo logrou oferecer a Vale de Cambra em forma de objetos agrícolas, peças do dia a dia dos habitantes que viram neste lugar um refúgio e ainda exemplos de um património industrial assinalável.
Vale de Cambra é lugar de fé e de uma relação profunda com a devoção a Santo António, padroeiro dos cambrenses. Aqui podemos encontrar esculturas alusivas ao santo de Lisboa, uma capela oitocentista, uma rua de Santo António e ainda uma igreja contemporânea, projetada pelo Agostinho Ricca, inaugurada em 1993, e onde se destaca a coleção de vitrais policromados, da autoria do importante pintor Domingos Rodrigues de Pinho, um dos fundadores, conjuntamente com o José Rodrigues, da cooperativa “Árvore”, no Porto. Importa referir que este escultor, nascido em Luanda em 1936, foi o criador da escultura do santo que se encontra no interior do espaço católico, atribuindo a Zulmiro de Carvalho a autoria do sacrário.
Mas porque as terras de Cambra não subsistem apenas na sede do concelho, vale a pena virar costas à cidade para descobrir o edificado das suas aldeias.
Arões, Fuste, Função e Codal são os recantos rústicos onde a ruralidade teima em persistir: eiras de granito, espigueiros e moinhos são cenários onde o tempo se mede pelo compasso das estações, contudo cada vez mais despida de população.
Mas das parcas aldeias cambrenses é a de Trebilhadouro a que mais se destaca, graças à sua arquitetura intemporal. Elevada a 625 metros de altitude ergue-se num sopé de silêncio revigorado pela reabilitação recente. Foi desabitada por décadas, mas renasceu como aldeia de turismo rural integrada nas “Aldeias de Portugal” e no projeto “Montanhas Mágicas”. Mantém eiras, canastros e a traça vernácula em pedra granítica, enquanto se ouve quase o eco das desfolhadas de outrora. Diz a lenda que o seu nome deriva de um tesouro formado por “três bilhas de ouro”, mito que emprestou encanto e mistério à toponímia. Nas imediações, gravuras rupestres datadas entre o Neocalcolítico e a Idade do Bronze revelam a presença humana desde há milénios, que pode encontrar cruzando um caminho pedestre, de 10 quilómetros, conhecido como PR4, que tem início e fim precisamente em Trebilhadouro.
A curta distância de Vale de Cambra encontra-se a sua vizinha Oliveira de Azeméis, municipalidade que se equilibra entre a herança rural e a marca industrial que ajudou a moldar o seu carácter contemporâneo. Muito antes das fábricas, era terra de feiras rumorosas, de carvalhais sombrios e de caminhos de peregrinos que, vindos do sul, seguiam para o Porto e daí até Santiago de Compostela.
Recebeu foral em 1779 e foi elevada a cidade em 1984. No seu património monumental destaca-se a Igreja Matriz de São Miguel, erigida entre 1719 e 1729 e reformada no século XIX.
O seu coração é o Santuário de Nossa Senhora de La Salette (ver galeria), erguido no início do século XX em estilo neomedieval, idealizado por António Correia, arquiteto conhecido por ter projetado, entre vasta obra, o edifício atual da Câmara Municipal do Porto. Com vitrais de Ricardo Leone e escultura de Henrique Moreira, este cenóbio substituiu uma primitiva capelinha datada de 1870. Esta nascera de um episódio quase lendário: em 1870, numa Oliveira de Azeméis assolada pela seca, uma procissão subiu ao Monte dos Crastos (nome primitivo da localização desta mancha verde) para implorar ao Divino por chuva. Ao chegar, o céu abriu-se em bátegas, e o milagre inspirou o abade local a erguer um humilde templo em honra da Senhora de La Salette, representação mariana que teve origem numa aparição de Nossa Senhora em 1846 a dois pastorinhos dos Alpes Franceses. A fé ganhou expressão entre o sacro e o festivo com o feriado concelhio, que a cada um de Agosto reúne multidões, entre procissões e louvores à Senhora de La Salette.
O parque, traçado em 1909 por Jerónimo Monteiro da Costa (paisagista que desenhou, por exemplo, o Jardim do Carregal, junto ao Hospital de Santo António, na Cidade Invicta), trouxe frescura e beleza ao árido monte.
Mas a história deste lugar não acaba aqui. Qual novela, as gentes de Azeméis ainda hoje relatam o insólito “caso do dedo”. Relatam as crónicas que, assustada por sucessivos roubos (inclusivamente um dedo mindinho e valioso anel extorquidos de uma das mãos da imagem da Virgem), a Comissão da capela de La Salette nomeou como guarda do lugar Tio Martinho, do lugar de Cidacos. Ancião de confiança, passou as noites a vigiar o local de culto. Certa madrugada, surpreendeu um vulto junto ao altar. Disparou com a caçadeira, mas o intruso manteve-se de pé. Tio Martinho trancou-o a sete chaves com o objetivo de o entregar às autoridades. Rendido e fechado na sacristia até amanhecer, revelou-se afinal o autor de um furto passado: o roubo do anel e do dedo mínimo da imagem da Senhora. Ironia do destino, o tiro de Martinho decepou-lhe o mesmo dedo, que hoje, preservado em álcool, repousa como relíquia insólita na capela.
Oliveira de Azeméis foi durante muitos anos conhecida pela sua indústria vidreira, passado ainda hoje conservado na Quinta do Côvo, ligada à produção de vidro desde o século XV, espaço que preserva ainda uma capela barroca, datada de 1862.

Parque Molinológico | Fotografias de Artur Filipe dos Santos
Descendo o vale, encontramos o Parque Temático Molinológico. Inaugurado em 2009, é um museu vivo onde o rio Ul (afluente do Antuã) continua a mover as rodas que, durante séculos, transformaram o grão em pão. Aqui ainda é possível assistir ao fabrico artesanal da tradicional pada de Ul (pão à base de trigo) e da regueifa doce, produtos que se encontram atualmente em processo de certificação.
E porque este concelho é grato aos filhos da terra, a Casa-Museu Ferreira de Castro, fundada em 1966, perpetua a memória do escritor oliveirense e das suas origens humildes.
Em jeito de conclusão, vale a pena não esquecer os sabores que unem Cambra e Azeméis à mesa: na primeira, o cabrito assado e as papas de sarrabulho são bandeira. Já em Oliveira de Azeméis, o pão de Ul e a regueifa doce abrem portas e corações. Em ambos, o vinho verde é companheiro fiel, servindo-se fresco, como quem convida a brindar às suas raízes, plasmadas nas festas religiosas destes dois conjuntos: Santo António, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora de La Salette, São Pedro. Misturam-se procissões com foguetes, danças e cantares e uma fragrância a broa quente.
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