Pegada pelas muralhas das “Marialvas”
 Pegada pelas muralhas das “Marialvas”
 Pegada pelas muralhas das “Marialvas”
 Pegada pelas muralhas das “Marialvas”

Pegada pelas muralhas das “Marialvas”

Crónica das Aldeias Históricas

Crónica de um roteiro de três dias a algumas das mais belas aldeias de Portugal

Dia 3 | Marialva e Trancoso

A noite do segundo dia não convidava a passeios noturnos. Se na anterior um bom par de convivas teve a oportunidade de realizar uma “caminhada higiénica”, acrescentando mais um ou outro quilómetro às pernas fustigadas pelos altos e baixos de Sortelha em particular, o fecho do segundo dia foi passado dentro de portas da unidade hoteleira, a jogar conversa fora e a preparar novas escapadas. A temperatura agreste que se sentia na cidade da Guarda convidava a uma visita prematura ao “vale dos lençóis”.

Manhã cedo e o frio da montanha manteve-se, acompanhado com nuvens que, apesar do cinzento carregado, não augurava chuva. Estava na hora de rumar a uma das mais bonitas aldeias do roteiro, Marialva.

Acena-nos de longe, como que a convidar viajantes que, à primeira vista não tinham intenção de a visitar. Ao chegar, somos confrontados com uma panorâmica característica das povoações beirãs e pelo tom caloroso das suas gentes: “depois de fazer a visita venha cá provar uns doces de Marialva!”

Localizada no concelho de Mêda, por esta terra, imortalizada pela lenda da “Maria dos Pés-de-Cabra”, passaram os Túrdulos Aravos (de origem celtibera), no séc. VI a.C. que terão aqui erguido um castro, dando nome a esta povoação, que seria mantido pelos romanos como Civitas Aravorum. Seguiram-se os suevos e logo os visigodos que lhe transformaram radicalmente o nome para S. Justo. Depois os muçulmanos, no séc. VIII. Durante muito tempo, senhores destas terras, o domínio mouro outorgou-lhe o nome de Malva, para depois, em 1063, Fernando o Magno, de Leão lhe conceder, finalmente, o nome que agora se conhece.

Não é uma pegada desafiante aquela que se empreende para alcançar o reduto da aldeia amuralhada, com a sua cerca a separar as duas “Marialvas”, a de Cima (dentro da fortaleza) e a de Baixo (já no arrabalde), que cresceu exponencialmente graças a um turismo sempre pujante, que este ano levou com o travão por nós todos conhecido.

Muralhas de Marialva

Às portas da entrada no recinto, encontramos o posto de turismo bem dotado de informação, e com técnicos de grande profissionalismo e simpatia, que nos agraciam com toda a documentação necessária para continuar a “visita guiada” no conforto das nossas casas. E, ao lado, uma cisterna quinhentista que ainda hoje preserva a sua rudeza granítica.

Os panos da muralha entusiasmam pelo facto de podermos calcorrear grande parte dos adarves, explorando ameias, merlões e seteiras, com a torre de menagem a pontuar o lugar.

Depois de um excelente exercício para os joelhos e restantes partes dos membros inferiores, é a hora de contemplar a bonita igreja de Santiago, que se encontra bem no centro do propugnáculo, edificada no séc. XVI, sagrada em 1585. De características manuelinas, maneiristas e barrocas, é um templo simples por fora. Por dentro, causa estranheza o facto da talha em madeira do altar-mor não ser pintada. Há quem diga que na altura em que foi realizado, o ouro tinha acabado, outros são mais simpáticos em confessarem que o trabalho de madeira era tão minucioso, que era impossível cobrir com folha à base do precioso metal. Para além da figura do Apóstolo Santiago no retábulo-mor, vale a pena dedicar atenção às imagens de S. Francisco de Assis e de Santo António e ainda o púlpito de pedra, com uma inscrição curiosa: “ARGVEA OBSECRA INCREPA”, que, segundo os historiadores, relata uma lição do Apóstolo Paulo ao seu aluno Timóteo.

A ladear a igreja, podemos contemplar a capela de Nossa Senhora de Lourdes e S. João Batista, do séc. XVII.

Capela de Nossa Senhora de Lourdes e S. João Batista do séc. XVII

Não é grande Marialva, mas é uma aldeia muito especial. Contudo, e porque o tempo não estava favorável a roupas pouco preparadas para o frio que se fazia sentir, motivou visita acelerada, não sem antes parar no cafezinho da D. Júlia, que já nos havia prometido uma iguaria adocicada da região.

Trancoso haveria de ser a seguinte e última paragem de um roteiro que já solta suspiros. Depois de rendido ao arroz de Galo de Monsanto, aqui tomaríamos o paladar à Vitela à Padre Costa ( “cura de Trancoso que ficou conhecido por gerar 299 crianças, de 54 mulheres diferentes) e a uma tarte de castanhas, chocolate preto e geleia de marmelo. Ainda hoje lhe sinto o sabor...

tarte de castanhas, chocolate preto e geleia de marmelo e carne de vitela de Trancoso

Entramos pela porta do Carvalho. Depois do almoço, partimos em busca da memória do sapateiro, escritor e profeta Gonçalo Annes Bandarra, personagem enigmática da cultura, conhecido pelas suas profecias messiânicas, ao ponto de lhe chamarem o “Nostradamus” português, cujos escritos inspiraram o Padre António Vieira, Alexandre Herculano e Fernando pessoa. Nascido no início do séc. XVI, repousa na igreja de S. Pedro de Trancoso, uma das mais bonitas da cidade. Com a dignidade de Matriz, encontra-se mesmo em frente ao pelourinho. De traça tipicamente barroca, podemos contemplar, para além do túmulo do arauto de Portugal como futuro “Reino Universal”, uma capela-mor ricamente decorada, com a mistura entre branco, dourado e azul a prenderem a atenção.

Mas Trancoso também foi praça fundamental para a comunidade judaica. Por toda a cidade amuralhada encontramos mais de 200 casas com marcas judaicas, para além de ainda hoje podermos visitar um centro interpretativo da cultura sefardita (os judeus ibéricos) e adentrar na sinagoga que, semana a semana, vem recebendo leitores da Torah desde as mais diversas partes do mundo.

comunidade judaica de Trancoso

À medida que descobrimos o destino complementar por terras beirãs, sentimos que, para qualquer lado que viramos a muralha está sempre presente para nos “proteger”. Com mais de um quilómetro de extensão, a cerca que protege o casco histórico e o castelo, ainda hoje conserva o período de construção datada do tempo de D. Dinis, mas também os melhoramentos realizados ao tempo do rei “Formoso”. Das suas portas, merecem especial destaque as portas do Carvalho (na qual entramos inicialmente), a D’el Rei (por onde saímos) e a do Prado.

Ao contrário de outras experiências vividas nestes três dias, alcançar o castelo foi “para meninos”. Fortaleza anterior à nacionalidade, foi pertença de Chamôa Rodrigues, sobrinha de outra grande promotora de castelos, estamos a falar nada mais, nada menos do que em Mumadona Dias, fidalga portucalense responsável pela edificação do Castelo de Guimarães. Por essa razão Trancoso esteve também sob a alçada do Mosteiro de Guimarães, corria o ano de 960.

Castelo de Trancoso com uma vista desafogada

A torre de menagem é o grande ex-líbris da cidadela, um mirante para toda a raia que se eleva a mais de 700 metros de altitude. Dali podemos ver, a norte, os montes de Penedono e, quem sabe, o Douro, impressionarmo-nos com a imponência da Estrela, a sul, vigiarmos Espanha a nascente.

Terminamos o périplo explorando um pouco mais a história do sapateiro-profeta ao visitarmos a Casa do Bandarra e deixando-nos fotografar em conjunto com a escultura que se encontra defronte aos Paços do Concelho.

 sapateiro, escritor e profeta Gonçalo Annes Bandarra

Foram três dias à (re)descoberta de algumas das aldeias históricas: Sortelha, Idanha-a-Velha, Monsanto, Marialva, Trancoso (e menções honrosas para Penha Garcia, Idanha-a-Nova, Penamacor, Guarda e Castelo Branco), marcos fundamentais do mais genuíno que a nossa cultura tem para oferecer, guardadas pela imponência de montes e serras que só a altivez das Beiras permite proteger, como joias intemporais de um passado orgulhoso, de um presente confirmado e de um futuro que se augura ascender a património da Humanidade.

E se há lições a tirar desta agradável experiência, mais do que todos os conhecimentos históricos à volta do património que conseguimos amealhar, fica a vontade de muitas vezes a estas paragens regressar.

Texto e Fotografias | Artur Filipe dos Santos, doutorado em Comunicação e Património pela Universidade de Vigo, é professor universitário e investigador no ISLA-Instituto Politécnico de Gestão e Tecnologia e membro do ICOMOS - International Council of Monuments and Sites. Especialista do património cultural e dos Caminhos de Santiago, é o autor do blogue “O Meu Caminho de Santiago” e autor de vários artigos e palestras sobre a tradição jacobeia.