Porto Modernista: A Praça D. João I como espelho de uma cidade em mudança
Praça D. João I e as memórias de um Porto modernista...
É das mais recentes da Invicta, com uma toponímia escolhida a dedo por uma homenagem há muito reclamada pelas gentes da cidade, ainda recordadas pelas páginas dos livros da história do casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, rainha também esta com honras de praça.
Paredes-meias com a “sala de visitas” da cidade que não dorme cada vez mais, entre a elegância “aristocrática” da Avenida dos Aliados e o bulício comercial das ruas de Passos Manuel e de Sá da Bandeira, abre-se a modernista Praça D. João I, espaço aberto num tempo feito de progresso e cimento, de escultura e memória.
Ali, onde hoje caminhamos entre sombras de bronze e fachadas de vidro, nem sempre foi um largo ou lugar de tertúlia: até aos anos quarenta, era um emaranhado de edifícios humildes, muitos deles devolutos, quase esquecidos, que acabaram por desabar diante da contemporaneidade do urbanismo embalado por um novo século.
Batizada em homenagem a D. João I, o antigo mestre de Avis que se fez rei após a crise de 1383-1385, que casou com Filipa de Lencastre na cidade do Porto em 1387, a praça carrega consigo a memória desse enlace que selou uma nova dinastia e, com ela, um novo rumo para o reino. Talvez por isso o lugar exale uma certa solenidade escondida sob a pressa dos dias, o constante corrupio de autocarros, automóveis e um manto interminável de viandantes.
Inaugurada com pompa entre as décadas de 1940 e 1950, a Praça D. João I rapidamente se tornou um “rossio” cobiçado de um burgo que aspirava à modernização vivenciada por essa Europa encaixada entre guerras. Os dois edifícios que a ladeiam são testemunhos desse espírito ambicioso: o Palácio Atlântico e o edifício Rialto, este último apelidado de o primeiro “arranha-céus” do Porto.

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Edifício Rialto, foi reconhecido como o primeiro Arranha-Céus do Porto. Durante quase 20 anos, albergou um dos mais importantes cafés da cidade.
Projetado pelo arquiteto Rogério de Azevedo (arquiteto notabilizado por obras emblemáticas como o hotel Infante Sagres, o edifício da garagem do jornal O Comércio do Porto ou a pousada de S. Gonçalo, em Amarante), o edifício Rialto foi inaugurado em 1948 e logo se caracterizou como o mais alto do país à data. Rogério de Azevedo, figura incontornável da arquitetura moderna portuguesa, soube conjugar no Rialto a funcionalidade das linhas direitas com um certo charme urbano, em sintonia com os ventos de mudança que sopravam pela Europa. O Rialto tornou-se um marco da arquitetura promovida pelo Estado Novo, não deixando, contudo, de refletir o desejo de ascensão de uma cidade então em transformação.

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Edifício Atlântico e panorâmica da Praça D. João I.
Em frente, o Palácio Atlântico, inaugurado a seis de janeiro de 1950, exibe a robustez e a elegância que caracterizam a melhor arquitetura deste período. Antiga sede dos Correios, dos Telégrafos e, mais tarde, dos Telefones, o edifício, que depois se tornou sede do Banco Português do Atlântico, destaca-se não apenas pela sua imponência, mas também pela riqueza dos seus painéis de azulejo, uma expressão singular da tradição cerâmica portuguesa. Tríptico de Jorge Barradas, os painéis retratam temas ligados às comunicações e ao progresso, sem esquecer o “ouro” de Portugal — assim era considerada, naquele tempo, a cultura da vinha e do vinho —, a forma perfeita de evocar uma narrativa de modernização e identidade nacional.
No centro da praça, onde hoje dançam apenas as vozes e os passos dos transeuntes, ergueu-se em tempos uma fonte luminosa, imagem da vanguarda. A fonte, mandada construir por iniciativa de um influente agente imobiliário, exibia ao fundo o desenho da rosa-dos-ventos e, à noite, acendia-se em espetáculos de luz que encantavam quem por ali passava. Rodeada por uma pequena rotunda de calçada portuguesa e emoldurada por arbustos bem cuidados, era uma espécie de farol urbano, uma joia de água e eletricidade que dava alma ao espaço. Mas, como as cidades movem-se muitas vezes como as pessoas que as habitam, em 2008 a icónica fonte “fez as malas” e rumou em direção a outra importante praça: a do Marquês de Pombal, por muitos anos conhecida como o “Largo da Aguardente”.
Em redor da D. João I, os cafés fervilhavam. Destes merece inevitável destaque o mítico e efémero Café Rialto. Inaugurado em 1944, rapidamente se tornou num dos salões de convívio mais emblemáticos da cidade. Espaçoso e elegante, foi ponto de encontro de artistas, intelectuais e homens de negócios. O seu encerramento em 1972 assinalou o fim de uma era e o início de uma redefinição urbanística da praça.

Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Escultura "Os Corcéis" do escultor João Fragoso
Felizmente, alguns vestígios de grandeza permanecem, destacando-se a panorâmica produzida, no centro da praça, pelas duas esculturas de bronze batizadas de “Os Corcéis”, do escultor João Fragoso. Assembladas em Vila Nova de Gaia, na Fábrica de Artes de Bronzes de Francisco C. Guedes, Lda., continuam a dominar a envolvente. Fragoso, influenciado por uma linguagem clássica de dinâmica e tensão muscular, capturou a essência bravia destes animais, conferindo à praça uma energia que ainda resiste ao passar dos anos.
Finalmente, o imponente Teatro Rivoli, inaugurado em 1913 como Teatro Nacional, vigia discretamente a praça. No seu friso, assinado por Henrique Moreira, figuras dançam e ecoam a vocação cultural do Porto — uma cidade que nunca esquece de contar histórias (por entre estórias e lendas) através das pedras, dos palcos e das praças, por muitos anos que passem.
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