Do Halloween ao Pão-por-Deus
Do Halloween ao Pão-por-Deus

Do Halloween ao Pão-por-Deus

Todos os anos miúdos, mas também graúdos, saem à rua mascarados de bruxas, feiticeiros e todo o tipo de criaturas assustadoras, em busca de doces ou travessuras. Apesar do Halloween ser uma importação anglo-saxónica, a cultura portuguesa guarda tradições intemporais genuínas dedicadas à festa de todos os santos e ao dia dos finados defuntos. Um dos mais antigos e recordados costumes é o peditório ritual do “Pão-por-Deus”.

Desde tempos primevos que os povos que habitaram o território que mais tarde viria a ser conhecido como Portugal, celebram de uma forma profunda a morte e a passagem das almas para o Além. Inicialmente conectadas com os cultos da natureza, protagonizados pelas comunidades celticizadas do noroeste peninsular, as tradições de prestar culto aos mortos e ao transporte das almas para um mundo invisível tinha uma importância de tal forma transcendental que a celebração do Ano Novo celta coincidia precisamente com esses ritos, que assim ganhavam um cariz festivo conhecido como o Samahain, dando inicio ao Inverno, a primeira das duas estações do ano do calendário celta.

Esta importante data ainda se reproduz no património cultural imaterial de Portugal, mas também da Galiza, desta feita na celebração do magusto (ou “magoisto”, na Galiza”). Verdadeiro “Samahain” (ou samónios, vocábulo que se vulgarizou tanto na Gália como na antiga província romana da Galécia, como atestam vários documentos dedicados a esta temática) ou “Halloween” português, cuja origem da palavra advém da expressão latina “magnus ustus”, que quer dizer, literalmente, “grande fogueira”, o magusto é uma das vivas expressões da nossa cultura, ainda hoje caracterizada pelo atear de fogueiras de caruma, preparadas para assar um dos últimos frutos do ano, a castanha.

Com a cristianização do território, fruto da invasão sueva e visigótica, passou-se a festejar a noite o dia de Todos-os-Santos, e é neste contexto que nos surge a tradição do Pão-por-Deus, rito associado a um costume ancestral de, em dias festivos, colocar alimentos nas campas dos defuntos, hábito proibido pela Igreja a partir do II Concílio de Braga, em 572.

O Pão-por-Deus é um dos muitos peditórios que se realizavam ao longo do ano em louvor às almas, levados a cabo em datas de importância religiosa. A título de exemplo, por altura da Quaresma, era costume, tal como no dia de Todos-os-Santos e dos Fiéis Defuntos, oferecer-se um “Canto” ou a “Encomendação das Almas”. Mesmo fora do calendário litúrgico, era frequente a organização de peditórios comunitários, como é disso testemunho as saídas, entre janeiro e fevereiro, dos caretos do nordeste transmontano.

Um pouco por todo país, esta tradição assumiu um tom único, refletido no pedido singelo das crianças que representam essas mesmas almas. Os pequenos versos e rimas que as crianças entoam carregam consigo séculos de história, de devoção e de uma ligação com o divino. Nas suas sacolas de pano (uma prática que se transformou igualmente em exemplo de património cultural como os “Lenços dos Namorados”), vão acumulando as ofertas: broas de mel e erva-doce, figos secos, romãs e nozes. E, em certas terras do Norte, pedem o “pão das almas”, enquanto em outras regiões falam dos “Bolinhos”, “Fiéis de Deus” ou o Santoro. Cada palavra dita, cada porta que se abre, traz consigo uma lembrança de tempos passados, onde o pão era mais do que alimento — era vida e memória, uma oferenda aos que já partiram.

Um costume que encheu a literatura e o cancioneiro de versos que persistem na oralidade das aldeias, tanto do continente com das “Ilhas de Bruma”:

“Bolinhos e bolinhos
Para mim e para vós
Para dar aos finados
Que estão mortos, enterrados.”

A tradição do "Pão por Deus" transporta-nos também ao momento em que o país tremeu no terramoto de 1755. Nessa manhã do dia 2 de novembro, em que a cidade de Lisboa sofria entre incêndios escombros, aqueles que perderam tudo viram-se forçados a pedir. E o pedido espalhou-se como um clamor coletivo, um apelo que ultrapassou as ruínas e perdurou nas gerações que se seguiram.

Mas não se pense que o hábito de pedir pão para as almas é exclusivamente ibérico. Em outras paragens onde a proximidade cultural (fruto da raiz celta comum) é evidente, por exemplo em Inglaterra, existiu durante séculos, a tradição do soul cake, o “bolo de alma”, costume que tem vindo a ser reavivado nos mais recentes anos:

“Soul, soul, for a soul cake!
I pray, good missis, a soul cake!
An apple or pear, a plum or a cherry,
Any good thing to make us Merry”

Vários autores advogam que é nesta tradição vinda das Ilhas Britânicas que se encontra a inspiração que leva as crianças norte-americanas, e agora um pouco por todo o mundo, a correrem as ruas na noite de Halloween à procura de “doçuras ou travessuras”.


2ª Fotografia | Imagem de Pexels por Pixabay


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