O Caminho alcança Valença
Até alcançar a cidade fortaleza de Valença, com os olhos postos já na catedral de Tui, há que cruzar pontes, seguir os passos da Rainha Santa e beber da Fonte de Ouro, seguindo o curso do rio Couro e viajando até à Idade do Ferro, naquela que será a última etapa em solo luso.
Ao longo da minha experiência do Caminho Português (como em todas as outras rotas, graças a Deus!) tenho tido a felicidade de encontrar seres humanos extraordinários, das mais diferentes idades, géneros e cores, desde a amiga D. Fernanda, de Vitorino dos Piães (a Casa da Fernanda), Flora Maciel (da Casa da Carolina), o Tó Lima Alves (do café Mineiro, em Valença) ou o saudoso José Manuel (Casa Pepe, Padrón) e muitos outros, desde Lisboa a Santiago. Em Rubiães (localidade de onde partimos em direção a Valença, para aquela que será a última etapa em solo português), mesmo ao lado do albergue público (uma antiga escola primária), conheci uma dessas personagens inesquecíveis do Caminho, a senhora Rosa (se a memória não me atraiçoa quanto ao seu nome), dona da Casa de S. Sebastião.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Senhora Rosa, proprietária do albergue "Casa de S. Sebastião", em Valença.
Senhora de provecta idade (a sua aparência já frágil, provocada pelos rigores do trabalho agrícola, aparentava uma idade bem mais avançada do que a que realmente tinha), a senhora Rosa confidenciou que nunca pensou em alugar quartos, quanto mais transformar num albergue a casa que tanto lhe custou a construir. Fê-lo por amor aos filhos, para poder pagar os estudos dos mesmos e garantir um futuro melhor, confessou, enquanto ajeitava criteriosamente o lençol de uma cama. Vestida de negro dos pés à cabeça, dona Rosa (já viúva há muitos anos) passa as manhãs a arrumar o albergue, a tarde a receber os peregrinos, a noite a ver televisão e assim vê passar os seus dias, agora que a sua saúde já não lhe permite tratar dos campos. Mas gosta do que faz. Ao falar de peregrinos que lhe ficaram positivamente na memória, os seus olhos brilham e rejuvenescem, agradecendo a Deus o dia em que teve a feliz ideia de criar o albergue, como se se tivesse transformado numa espécie de “avó” de todos os peregrinos que pela sua casa passaram: “existem rapazes e raparigas que passados alguns anos voltam aqui, vêm só para me dar um abraço”, segredou a senhora Rosa, já com uma lágrima cristalina a brotar dos olhos.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Ponte romano-medieval.
De volta à jornada jacobeia, entre Rubiães e Cossourado, sobre o rio Coura, transpomos a ponte romano-medieval, uma construção envolta em brumas quanto à data precisa da sua construção, já que a mesma aponta características eminentemente medievais, apesar da forma da base dos seus pilares apresentar traços de origem romana.
Já em Cossourado podemos encontrar uma pedra evocativa da colocação das setas amarelas ao longo do Caminho, do lado de cá da fronteira, uma iniciativa que teve lugar a partir dos anos 90 mas com maior dinâmica já nos primeiros anos do séc. XXI. Mas é nas cercanias da freguesia que se encontra o seu mais precioso tesouro, a Cividade de Cossourado, cujas origens datam da Idade do Ferro, e onde podemos descobrir duas casas reconstruídas, dando a conhecer a tipologia destas habitações de origem castreja. Há peregrinos que pernoitam em Cossourado só para terem a oportunidade de subir ao monte e avistar uma paisagem dominada pelas bacias do Coura e do Minho.
O Caminho prossegue lado a lado com o rio Coura, embrenhando-nos na floresta até alcançarmos a Capela de S. Bento da Porta Aberta, entre Cossourado e Gondomil, um pequeno templo de traços barrocos, do séc. XVIII.
A origem do nome deste templo é lendária, com a tradição a descrever a surpresa que os habitantes da aldeia tiveram, um certo dia, quando encontraram a imagem do orago da capela, S. Bento, em cima de uma árvore, apesar das portas do cenóbio estarem fechadas à chave, num cenário que se repetiu por muitos dias, até que as gentes substituíram a porta existente por uma de gradeamento, para que os crentes pudessem, livremente, contemplar a imagem do santo. Consta-se que o Santo ficou satisfeito, finalmente.
De S. Bento da Porta Aberta até Fontoura não leva mais do que meia hora. Localidade histórica para aqueles que se dedicam a estudar o Caminho Português, as crónicas referem que a Rainha Santa Isabel aqui pernoitou, aquando da sua primeira peregrinação a Santiago de Compostela, em 1325, e bebeu da “fonte de ouro”, que ainda hoje existe junto à Quinta da Casa Alta.
Fotografia de Artur Filipe dos Santos | Capela do Senhor dos Aflitos e Cruzeiro com símbolos da rota jacobeia.
Ao entrar na pequena aldeia, encontramos logo a pequena capela do Senhor dos Aflitos. Junto ao Caminho, esta capela tem a particularidade que infelizmente escapa à maioria dos viandantes: atrás do reduzido templo, encostado à parede, encontramos um cruzeiro que apresenta esculpido um bordão e uma vieira, símbolos fundamentais da rota jacobeia. Antes de seguir, é bom parar na “Taberna da igreja”, para devorar um pão com presunto, porque o corpo precisa de combustível.
Uma hora e meia espera-nos até alcançar Valença. A seguir à Quinta da Estrada Romana (aí encontramos as típicas setas indicadoras de quilómetros, informando os peregrinos que ainda faltam 135 km para chegar a Compostela e, em sentido contrário, 300 km para alcançar Fátima) cruzamos a ponte romana da Pedreira (ou do Cerdal), importante estrutura da antiga via romana nº VI que ligava Bracara a Asturica. Entramos em Arão, deixamos uma prece na “alminha” do Senhor do Alívio e descansamos junto ao cruzeiro da Igreja do Divino Salvador.
Meia hora depois eis-nos em Valença, em clima de euforia, por alcançar, finalmente, a fortaleza e a fronteira natural que nos separa da Galiza.
Gostou do texto? Deixe abaixo a sua reação e comentário...