Quando o Havai desembarcou em Lisboa: A visita real que mudou vidas
Quando o Havai desembarcou em Lisboa: A visita real que mudou vidas

Quando o Havai desembarcou em Lisboa: A visita real que mudou vidas

Quando o rei do Havai visitou Portugal em 1881, iniciou-se uma história de emigração, cultura e música que uniu as ilhas havaianas às tradições portuguesas.

Antes das muitas viagens realizadas (inclusivamente a Portugal), pela Rainha Isabel II, reconhecida como a soberana que mais itinerários empreendeu pelo globo (durante os 70 anos do seu reinado — 1952–2022 —, cumpriu cerca de 290 visitas de Estado e percorreu mais de 1 milhão de milhas, visitando, aproximadamente, 117 países) —, houve um ilustre desconhecido e excêntrico que completou a primeira volta ao Mundo, intentada por um monarca. O seu nome é Kalãkaua, rei do arquipélago polinésio do Havai, e também ele visitou o nosso país.

Lisboa, 1881: o rei chega à capital

A Estação de Santa Apolónia fervilhava de curiosidade. Quem era aquele homem de pele escura, uniforme sumptuoso e ar afável, que descia do comboio rodeado de oficiais e criados exóticos? David Kalākaua — rei das longínquas ilhas do Havai (mais de 130, das quais se destacam a ilha principal, Havai, e ainda Maui, O’ahu e Moloka’i) chegava à capital portuguesa, parte de uma extraordinária viagem de circum-navegação que o levaria a visitar chefes de Estado de todo o mundo. Era a primeira vez que um soberano havaiano pisava solo europeu. E que escolhia Portugal (naquela época uma potência colonial) como uma das suas paragens mais importantes.

O rei, conhecido no seu país como o “Monarca Alegre”, não vinha por mera diplomacia. Trazia consigo uma missão clara: convidar portugueses a partir para o Havai e fixarem-se nas suas ilhas paradisíacas. Procurava trabalhadores agrícolas, famílias dispostas a cruzar meio planeta em busca de uma nova vida entre coqueiros, vulcões e vastas plantações de cana-de-açúcar. 

Kalākaua foi recebido com pompa e circunstância por D. Luís I no recém-edificado Palácio da Ajuda. Trocaram cumprimentos cerimoniosos, conversaram sobre oceanos e impérios, com o soberano havaiano a ser, inclusivamente, agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Imaculada Conceição de Vila Viçosa. Entre uma visita a Sintra e os passeios pelos salões dourados da realeza portuguesa, o monarca insular foi deixando claro o seu interesse: queria braços portugueses a trabalhar nos campos do seu reino, queria que a amizade luso-havaiana se traduzisse em gente e em futuro.

Porquê os portugueses?

O contexto era claro. O Havai vivia uma mudança profunda. A população nativa havia diminuído drasticamente, vítima de doenças e colonização europeia. A economia açucareira, em crescimento, precisava de força humana. Kalākaua já recrutara trabalhadores da China e do Japão, mas ambicionava diversificar. Os portugueses, católicos, rurais, familiares, eram a escolha ideal. Já havia alguns no Havai, marinheiros e emigrantes madeirenses que haviam deixado boa impressão. Então porque não formalizar essa corrente migratória?

Foi assim que, enquanto o rei prosseguia a sua volta ao mundo, o seu emissário, William Armstrong, permaneceu em Lisboa para negociar um tratado de imigração. Em poucos meses, centenas de famílias madeirenses, açorianas, mas também algumas (poucas diga-se) do continente, prepararam as malas. O governo havaiano oferecia passagem, terra, casa e cidadania após uns anos permanência e labuta. Para muitos, parecia uma utopia realizável: um clima ameno, longe das pragas que devastavam vinhas (depois da crise da filoxera, que em 1860 se abateu sobre as videiras do sul da Europa, doenças como e míldio e do oídio atacavam continuamente) e da miséria que assolava o campo português. Era a promessa de um novo começo, do outro lado do mundo.

Com as gentes que o rei Kalākaua levou de Portugal, muitos portaram consigo a cultura, tradições e, claro, a música das suas terras.

Conta-se que, quando os primeiros grupos de madeirenses chegaram a Honolulu — já naquela época capital do agora quinquagésimo e último estado norte americano —, em finais da década de 1870, traziam consigo um pequeno instrumento de quatro cordas.

De acordo com o historiador e jornalista Jim Tranquada, co-autor da obra de referência mundial The Ukulele: A History (University of Hawai‘i Press, 2012), foram três insulares — Manuel Nunes, José do Espírito Santo e Augusto Dias —, trabalhadores contratados para laborarem nos campos cana-de-açúcar, essa cultura que também floresceu na nossa “Pérola do Atlântico” (mas, como originalmente eram marceneiros, continuaram a sua atividade, desta feita na capital havaiana), que, no final de oitocentos trouxeram consigo para o Havai o som invulgar do pequeno cordofone. Chegados a bordo do veleiro britânico Ravenscrag, seriam eles os primeiros a semear, naquele solo longínquo, as notas que viriam a embalar gerações. Chamavam-lhe machete ou o braguinha, cordofone de quatro ou cinco cordas, uma “viola de mão”, parente do cavaquinho minhoto (um assunto que daria outra crónica). E, no calor das noites tropicais, ao som das ondas e sob palmeiras silenciosas, começaram a dedilhar modinhas e viras, em busca do som do berço que ficou para trás, procurando espantar a saudade. Os havaianos, mais habituados aos ritmos do Hula, logo se fascinaram com singular sonoridade.

Rapidamente, o instrumento foi adotado, adaptado e reinventado. Ganhou novo nome: “ukulele” (ou uquelele na grafia de Camões), que em havaiano significa “pulga saltitante”. Talvez por culpa das toadas mais alegres proporcionadas por esta nova forma de vivenciar a música, em forma de cordofone, até então, plenamente desconhecida das gentes das ilhas, tornou-se companheiro de festas, das recepções da corte e até mesmo das danças Hula. 

Nos anos que se seguiram, chegaram ao Havai milhares de portugueses. Fixaram-se em Oʻahu, Maui, Kauaʻi e na ilha Grande. Fundaram igrejas, escolas, padarias. Deixaram marcas na gastronomia, na língua e na música. E os seus filhos, nascidos havaianos, tocavam ukulele com a mesma naturalidade com que os avós tinham tocado cavaquinho.

O próprio rei Kalākaua cedo virou fã do som emanado pelas cordas e caixa da “pulga”, talvez sem imaginar que aquele som, tão português na sua origem, se tornaria, em breve, também um símbolo nacional havaiano, a par das vestes tradicionais, da prancha de surf, do hula e o “Pôr-do-Sol” sempre inesquecível.


Imagem de capa criada por AI


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