Valença, Tui e o Fogo de San Telmo
O Caminho Português alcança a sua fronteira natural com a Galiza pela porta da fortaleza de Valença, mas já com a catedral de Tui à vista. Ultrapassar a ponte internacional sobre o Rio Minho é dos momentos mais transcendentais desta rota jacobeia.
Aproximar-nos da fortaleza de Valença, depois do tanto que se andou e experienciou, e que agora fica para trás à medida que nos vamos aproximando da meta final do Caminho, provoca um “friozinho” no estômago. Invade-nos uma sensação quase “medieval” do peregrino que deixa para trás o seu reino e adentra em território desconhecido, apenas tentando imaginar os desafios que agora vão surgir.
Ao cruzarmos a Porta do Sol, os peregrinos mais eruditos relembram a antiga lenda da princesa Contrasta e do seu velho pai que, vencido por um caudilho mouro, viu as pétalas das flores do seu palácio transformarem-se nas pedras que hoje formam a fortaleza. Histórias e lendas que o tempo encerra numa fortaleza erguida a partir do séc. XII para fazer frente às investidas castelhanas, sendo transformada, no séc. XVII numa praça-forte abaluartada, no contexto da Guerra da Restauração da independência. É Monumento Nacional desde 1928.
No seu interior espera-nos a Igreja da Colegiada de Santo Estevão, construída no séc. XIII, por devoção ao primeiro discípulo-mártir do cristianismo. No seu interior, constituído por três naves, conserva-se a única imagem da Virgem a amamentar o menino que teve o condão de escapar à censura da inquisição.
Ao abandonar o cenóbio, à medida que nos vamos embrenhando nas ruelas em busca de uma vista “instagramável” para a Galiza a partir da muralha, deparamo-nos com o gigantesco marco miliário da Via XIX, que ligava Bracara a Tude (atual cidade de Tui) rumo a Asturica (Astorga), datado do séc. I, mandado edificar pelo imperador Cláudio.
Realmente, vale a pena avistar o norte a partir de qualquer pano da fortaleza, esperando que o espírito de irmandade que une os dois lados da raia — apenas dividido pela fronteira natural que o Minho representa — nos leve pelos bons caminhos da fraternidade, como sempre assim foi, mercê de uma mesma cultura que não olha a fronteiras políticas.
O arco da Gaviarra significa o princípio da despedida ao Alto-Minho, já com o cinzento metálico da ponte rodoferroviária à vista. A seta amarela pintada à entrada do tabuleiro avisa até os mais distraídos que o Caminho segue pelo tabuleiro da mais icónica travessia do Minho, projetada pelo arquiteto espanhol Pelayo Mancebo, inaugurada em 1886.
Determo-nos, mesmo que por breves momentos, no meio dos 318 metros de comprimento do seu tabuleiro, faz-nos sentir qual Humpty Dumpty num muro entre dois mundos, mas porque Santiago nos chama, somos acometidos por um folego místico que nos convence, finalmente, a virar costas a casa e “conquistar” Tui.
Logo as marcas jacobeias nos convidam a seguir caminho, ao sermos recebidos por um típico cruzeiro galego, ícone que nos fará companhia, à semelhança das “flechas amarillas”, ao longo da rota. Ao ver este primeiro cruzeiro, há quem opte por virar na estrada à direita, seguir rumo ao parador de Tuy e deitar um último olhar à fortaleza portuguesa.
Pouco mais de 10 minutos e avistamos o extraordinário tímpano, em estilo gótico, do pórtico real da Catedral de Santa Maria de Tui, uma das composições artísticas mais surpreendentes da cena da “Adoração dos Reis Magos” que podemos encontrar nas igrejas do país-vizinho. Ao entrarmos nas suas naves somos surpreendidos com umas raras estruturas que mantém firmes as colunas que sustentam a abóboda, os tirantes, elementos que têm a mesma função dos arcobotantes góticos (que são colocados nas paredes exteriores das maiores igrejas góticas como Burgos, León ou até na Notre-Damme de Paris), que é a de distribuir o peso dos telhados pelas colunas, ao mesmo tempo que ajuda a suportar as paredes do templo.
É na catedral que se encontra um dos mais importantes santos da tradição jacobeia: San Telmo (ou Pedro González Telmo), padroeiro da cidade de Tui.
A tradição fala que este beato dominicano, nascido em Fromista (cidade que se encontra em pleno Caminho Francês de Santiago entre Burgos e León), terá realizado o Caminho vindo de Portugal (onde foi prior do Convento de S. Domingos, em Guimarães, e que teve como um dos seus frades ilustres, à época, S. Gonçalo de Amarante), na Páscoa do ano de 1246. A cinco quilómetros a norte de Tui, na continuação do Caminho Português, junto ao rio San Simón terá tido um forte acesso de febre, obrigando-o a regressar à cidade fronteiriça, onde viria, pouco depois a falecer. Sepultado na catedral de Tui e beatificado em 1254 pelo Papa Inocêncio IV, junto à ponte onde São Telmo foi invadido pela doença, foi erguida uma cruz e, junto a esta uma epígrafe com a seguinte mensagem: “Caminante aquí enfermó de muerte San Telmo en abril de 1251. Pídele que hable con Dios a favor tuyo” A travessia ficou desde então conhecida como a Ponte das Febres.
Refira-se algumas curiosidades ainda relacionadas com esta personagem histórica, como a da sua hagiografia ser muitas vezes confundido com outro San Telmo, desta feita Santo Erasmo de Formia, um eremita libanês martirizado à época do imperador Diocleciano. Padroeiro dos marinheiros, uma velha lenda com epicentro na cidade costeira de Baiona, refere um milagre realizado por González Telmo que acalmou a tempestade, salvando a vida dos pescadores e marinheiros galegos incautos. Tal feito terá levado a que os marinheiros identificassem um estranho fenómeno atmosférico que atinge os mastros mais altos dos navios como o “fogo-de-santelmo”, sendo considerado o padroeiro maior dos homens da Costa da Morte galega. Finalmente refira-se que, apesar da forte devoção, Telmo nunca foi canonizado, existindo atualmente um processo junto da Santa Sé dinamizado pelas dioceses de Tui, Porto e Palencia.
Fotografias de Artur Filipe dos Santos
Chegou a hora de rumar em direção a Porriño, não sem antes optar pelo marco do caminho que aponta para a esquerda (para fugirmos ao cansativo alcatrão do polígono industrial), no único lugar de todas as viandanças jacobeias onde existem dois marcos, lado a lado, do Caminho de Santiago.
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