A Perigosa Censura do Passado

A Perigosa Censura do Passado

Ser humano é estar envolto num destino contínuo onde cada geração e cada época sucede às anteriores. O que somos hoje depende dos passos anteriores que demos enquanto humanidade, ainda que os passos presentes e futuros sejam novas rotas, desvios criativos face ao que do passado se enrijeceu e petrificou ao nível do pensamento e do comportamento.

Cada esboço de novidade anunciada assenta no que de rastro do passado ficou, ainda que por vezes este não seja o melhor e o mais humanizante. Seja a inquisição, a colonização ou o holocausto nazi, seja a construção de muros e a corrida ao armamento nuclear na guerra fria, o que se verifica é que de cada período passado emana o gérmen de uma novidade que se anuncia e que irrompe como uma brecha entre o passado e o presente num passo que se inclina para um futuro, sempre fruto do presente coletivo que o move.

A colonização despoletou o movimento de emancipação dos povos, cujo chão existencial se formou da necessidade de igualdade, de liberdade e de fraternidade. Da inquisição resultou a necessidade de novas e renovadas visões do mundo em relação ao divino e à hermenêutica do que pode ser a pluralidade da relação do Homem com um Deus vivo, a partir daí foram-se esboçando os gestos seminais do respeito pelas diferentes religiões, o desejo do ecúmena e a força pungente do Renascimento. Ao holocausto nazi surgiu a vontade de uma união planetária das nações em torno de uma ideia de cuidado da paz e sã convivência entre os povos pela criação da Organização das Nações Unidas, tendo este testemunhado o seu expoente máximo na criação da UNESCO e na redação da Carta Universal dos Direitos Humanos.

À guerra fria sucedeu-se o derrubar de muros, a criação de uma União Europeia mais alargada e ampla, e os movimentos de desnuclearização do mundo. Ainda que frágeis na sua concretização e realização plena, a verdade é que ainda não testemunhamos nenhuma coreografia do fazer humano melhor e efetivamente transformadora como os acontecimentos históricos citados.

Cada movimento da humanidade repousa no seu passado, por essa constatação, urge denunciar a atual tentativa de adulterar os factos históricos, através da reescritura de textos antigos, de romances, de policiais, e outros, apenas porque não cabem na métrica moralista de quaisquer interesses obscuros presentes na atualidade.

Interesses de identidade difusa que parecem ter como agenda uma completa reelaboração do passado histórico, através do uso da censura, da ocultação e da adulteração das realizações passadas. Ainda que estas não se encaixem no cânon atual de pensamento e comportamento, é de fulcral urgência preservamos o seu conteúdo, pois só assim, ou seja, através de uma educação histórica consciente e humanista é que podemos fazer uma outra história de futuro, no sentido de um outro lugar, e de uma outra forma de habitar e coexistir no mundo.

Sempre existiram e existirão as tentativas totalitárias, unidimensionais e absolutistas de condicionar os espíritos livres e criativos inerentes ao salutar ser humano. O uso do “lápis azul”, a tentação de apagar as idiossincrasias históricas, singulares e individuais é uma sombra que nos acompanha enquanto Humanidade. Reescrever a história, redesenhando o passado para transformá-lo através do presente é um risco e um perigo que se manifesta em crescendo na atualidade.

Existe o risco de lançar sementes do passado, no presente, totalmente adulteradas, com o perigo de no futuro estas possam florescer, e virem a prevalecer numa versão reinventada da história, face ao original do ocorrido e da verdade dos factos, é algo que nos deve alertar e preocupar.

Esta é uma atitude altamente danosa que merece ser denunciada em resistência à estupidez e ignorância reinantes.

Tais atitudes de índole totalitária tendem a instalar-se e fazer residência no comportamento habitual da maioria de nós, essencialmente pelo desenvolvimento da apatia e da alienação. Habituados à redundância entorpecedora da televisão, dos media em geral e das redes sociais, fomos nos acomodando à distração, à estupidificação e ao entretenimento a que estes nos induzem.

Quando a isso acostumados vamos fazendo morada na distração. Regra geral vamos resistindo à necessidade de reflexão e de um comportamento comprometido e envolvido com novos e renovados caminhos, aqueles que rompem com o estabelecido e com o que de patológico se instalou no funcionamento habitual da pessoa.

Os comportamentos são tão bizarros que a nudez da estátua de David do pintor renascentista Miguel Ângelo, hoje, pode ser considerada pornográfica. Assim como livros antigos podem ser escondidos, estátuas podem ser demolidas, como se deles não necessitássemos para nos relembrar do que não devemos repetir.

Tal comportamento é clivado, pois existe um foço entre o que se diz e o que realmente se faz, condena-se e rescreve-se qualquer texto discriminatório, racista e homofóbico, não que tais não sejam condenáveis e reprováveis, no entanto, o comportamento danoso e discriminatório mantém-se ou em alguns casos agrava-se.

No fundo trata-se de um discurso e agir puritano perverso e falsamente moralista em relação aos seus atos e ações, cujos efeitos são contraproducentes. É como se, ao se, apagar a história se apagasse a memória do ocorrido, o que na realidade não acontece. Sendo que o que se verifica é a recorrência do trauma por silenciamento. Um silenciar que repousa no faz de conta desumanizam-te. “Isso ocorreu, mas vamos fazer de conta que não”, potenciando desse modo a dissonância, a linguagem paradoxal e clivada entre o que se sente e ocorre como verdade individual e coletiva com aquilo que se confirma e reconhece, trata-se de uma atitude onde as marcas do ocorrido se disfarçam por meio de uma realidade adulterada. 


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Galeano, E. (2010). De pernas pro ar. L&PM Editores.

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