Bengalas de Gestaçô: Memórias Dobradas na Madeira
Bengalas de Gestaçô: Memórias Dobradas na Madeira

Bengalas de Gestaçô: Memórias Dobradas na Madeira

A curva do tempo numa terra de artesãos...

É uma das tradições mais conhecidas do concelho de Baião. As bengalas de Gestaçô são um exemplo de como a evolução do engenho humano conseguem contribuir para a preservação da artesania e cultura local.

Na penumbra da oficina, a água fervente canta numa panela de ferro, libertando nuvens de vapor que impregnam o ar com o aroma doce da madeira quente. Um artesão de Gestaçô, mãos calejadas e olhar atento, aproveita o instante certo: com movimentos lentos e firmes, encosta uma vara de madeira amolecida pelo banho quente a uma barra metálica e começa a dobrá-la. 
Terra rica em giesta, é desta planta que advém o topónimo desta pequena freguesia do concelho de Baião, distrito do Porto, de apenas mil e poucos habitantes. Mas também não lhe falta o lódão, os sobreiros e carvalhos, fontes de uma madeira que cede, que se curva graciosamente sem quebrar, tal como tem acontecido, geração após geração. 

Neste lugar, em tempos remotos apelidado de S. João de Gestaçô, entre as serras do Marão e de Montemuro (com Aboboreira ao longe) e as margens do Douro, forjou-se ao longo de mais de um século uma tradição, de inegável valor identitário, das bengalas de Gestaçô. Um ofício tão enraizado que a localidade ganhou fama como berço das bengalas em Portugal, tornando este objeto muito mais do que um apoio de caminhada: é um símbolo da identidade local.

Volvamos ao final do século XIX. As primeiras oficinas de bengalas surgiram então em Gestaçô, numa época em que o “bengalaço” fazia parte da elegância masculina e era companhia inseparável dos cavalheiros. Foi nesse contexto que um nome se gravou na história da terra: Alexandre Pinto Ribeiro, o grande impulsionador do ofício, instalou a sua oficina na aldeia em 1902. Regressado de África em 1888 e inspirado por uma exposição de bengalas em Madrid, Alexandre portou consigo uma ideia vanguardista. Introduziu na produção local uma inovação tecnológica simples mas eficaz: a técnica da dobragem da madeira.

A técnica de dobragem consiste em submeter as pontas de tiras de madeira a vapor de água ou água a ferver até ficarem maleáveis, usando depois uma barra de ferro como apoio para curvá-las suavemente. Ao contrário do antigo método de talhar o punho a partir de um bloco maciço, esta abordagem permitia aproveitar muito melhor a matéria-prima e produzir bengalas mais resistentes e de maior qualidade. Uma “atualização” que transformou profundamente o fabrico local. 

Não é tarefa fácil idealizar uma bengala de Gestaçô. Leva quatro horas a criar uma só bengala, dependendo do nível de personalização que o artesão lhe desejar incluir até estar pronta para deliciar o cliente. Mas até lá há toda uma obra a desenvolver. 

Primeiro, a madeira é escolhida com critério. O lodão é a mais usada, pela sua abundância e maleabilidade, mas também se recorrem ao sobreiro, marmeleiro, carvalho e castanheiro. As madeiras de cerejeira e macieira, mais nobres, são reservadas para as bengalas de “primeira”. A árvore é comprada inteira e cortada em tábuas de cerca de um centímetro e meio de espessura, que secam à sombra, pacientemente, até ficarem prontas a ser transformadas.
Segue-se o corte em tiras, que serão cozidas em panelas de ferro assentes na lareira acesa. A ponta que dará origem à croça mergulha-se em água a ferver, ganhando maleabilidade e evitando que rache. No lume, aquecem também os moldes de ferro fundido, que hão de receber a madeira no momento da dobragem.

Chega então a fase mais espetacular: a dobragem. A madeira, ainda húmida e quente, é pressionada contra um molde incandescente. Uma chapa metálica, presa com argolas, protege-a de estalar. O artesão, com movimentos firmes, curva a peça em torno do ferro vermelho, queimando ligeiramente as fibras interiores para fixar a forma. É nesta operação que nasce a identidade da bengala: o punho curvo, inconfundível.

Depois, a bengala repousa horas inteiras com grampos e suportes, de modo a ganhar consistência. Quando arrefece, começa o desbaste. Com enxó, plaina e grosa, a secção quadrada é moldada até ganhar forma cilíndrica. O artesão vai retirando lascas, afinando e polindo, até a madeira se transformar numa peça elegante, leve, de toque suave.

Vem então a fase da decoração, onde a imaginação dita o rumo. Cada mestre tem o seu estilo: uns desenham ranhuras em espiral, outros esculpem cabeças de animais, incrustam latão ou osso para imitar olhos brilhantes, gravam símbolos e letras. Por esta e tantas outras razões, nenhuma bengala é igual à outra.

Bengalas

Imagens criadas por IA.

Finalmente, a peça é mergulhada numa “aguada” de água com pó de tinta, que lhe dá tonalidades escuras e uniformiza o poro da madeira. Depois, o artesão aplica camadas de verniz, pacientemente, até que a superfície adquira brilho e resistência. Só então a bengala está pronta a sair da oficina.

Gestaçô rapidamente tornou-se numa referência regional na produção não só de bengalas mas também de cabos de guarda-chuva em madeira. As oficinas multiplicaram-se e as encomendas choveram. Das casas de guarda-chuvas do Porto e de São João da Madeira às lojas finas de Lisboa e Braga, muitos queriam abastecer-se com as peças saídas desta terra. Não era raro ver senhores elegantes a exibir garbosamente essas bengalas trabalhadas, verdadeiros adereços de requinte que se tornaram ícones de uma época abastada, imortalizada por ilustres como Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, frequentemente recordados de bengala em punho.

Mas o esplendor das bengalas de Gestaçô não duraria para sempre. A partir de meados do século XX, os tempos mudaram. A bengala abandonou os escaparates da moda como parte da indumentária masculina e as varetas dos guarda-chuvas em madeira foram substituídas por cabos de plástico e fibras sintéticas. Sem mercado, muitas das oficinas familiares fecharam as portas. A atividade mergulhou numa crise profunda que quase a levou à extinção, restando apenas alguns mestres dedicados que teimavam em manter vivo o ofício herdado dos antepassados. Durante décadas finais do século passado, as bengalas de Gestaçô sobreviveram mais como curiosidade ou peça de decoração do que como objeto do quotidiano.

Eis então que, já no limiar do século XXI, um improvável aliado veio resgatar as bengalas de Gestaçô do esquecimento: a universidade. 

A tradição estudantil da Queima das Fitas, que todos os anos assiste à “luta” de bengalas coloridas dos finalistas de cartola na cabeça, espalhou o legado artesanal de Gestaçô pelas academias de todo o país. De Norte a Sul, mas com especial relevância para Coimbra e Porto, por altura dos cortejos académicos que marcam o fim da carreira estudantil, ouvem-se os toques ritmados de dezenas de milhar de bengalas batendo no chão em uníssono, empunhadas por futuros “doutores” trajados. Para gaudio dos saudosos gestaçoenses (briosos da sua herança cultural), muitas dessas bengalas provenientes das mãos habilidosas dos artesãos de Gestaçô. 

Tradição inscrita no Inventário Nacional do Património Imaterial, todos os anos, mais de 20 mil exemplares seguem desta freguesia para as festas dos estudantes, mantendo vivo um produto artesanal que por pouco não se perdeu.


Gostou do texto? Deixe abaixo a sua reação e comentário... smiley


Ver também |

Em tempos sombrios, resistir é um ato de humanidade

Em tempos sombrios, resistir é um ato de humanidade

Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis: Tesouros Escondidos de Portugal
Vale de Cambra e Oliveira de Azeméis: Tesouros Escondidos de Portugal

Pronto para a próxima aventura? Escolhe alojamentos com o Selo Draft World Magazine e viaja com confiança! ✈️ Reserva já!