O Avesso da Inteligência
Vivemos tempos de grandes mudanças, as certezas de ontem, hoje já não valem, tudo é líquido e corre a uma velocidade estonteante. Somos espetadores de um filme que se desenrola, cujo enredo ainda se apresenta confuso. Não sabemos bem qual será o destino da história humana atual. O que sabemos é que não somos meros espetadores, ou não o devemos ser, mas sim, somos coautores e atores desta história e trama que se desenvolve.
Mudanças climáticas, reorganização geopolítica, discursos contraditórios, confusos e alienantes, capitalismo selvagem e de “vigilância”, especulação, corrupção em crescendo, desregulação do mercado de trabalho, fragilidade dos vínculos humanos, crises migratórias, guerras sangrentas, crises financeiras, digitalização da vida, enfim o cardápio é grande e diverso. Estaremos num “manicómio global1”?
Existem propostas alternativas, mas infelizmente não aparecem nos nossos ecrãs (atual espaço privilegiado da reunião de cada dia).
Se não aparecem, não existem? Existem, sim, mas não são reconhecidas pela maioria. Para reconhecer é necessário conhecer, e para tal é indispensável que se apresentem as alternativas e que se experimentem novas e renovadas formas de vida. Claro que é possível uma Sociedade Alternativa. Claro que existem outras formas de organização humana. Claro que é possível uma economia à escala humana, e um desenvolvimento baseado na sustentabilidade dos recursos naturais em detrimento do modo baseado no crescimento desenfreado e no consumo predador. Alienante é pensar que outras alternativas não são possíveis e ficarmos reféns de um pensamento único de um modelo unidimensional profundamente desligado da vida e do humano. Mais do que números, perfis, consumidores, utilizadores e seguidores, somos gentes em carne e osso.
Voltando ao cardápio, para além do “prato principal”, este vem acompanhado com “sobremesa”, a era da pós-verdade, a massificação de um modo de digital de vida. Uma vida que passa cada vez mais na rede e na nuvem (imaterial), cada vez menos orgânica, analógica e natural. Para completar, claro está, como se fosse a cereja no topo do bolo, a grande promessa do milénio: a magnificente Inteligência Artificial (IA).
A IA é o grande artifício que nos é apresentado como a grande solução para quase tudo, a grande salvação para a “ineficiência” humana. Há até quem diga que ela será a nossa salvação. Será? Não me cabe fazer juízos de valor, ou apresentar uma visão preconceituosa, mas não podemos ignorar a nossa singularidade e a nossa subjetividade. Este discurso salvífico e profético em relação à IA, é completamente alienante, pois se há alguma coisa que nos pode salvar, ou seja libertar (de todas as amarras, alienações e desigualdades), é um progressivo desenvolvimento do comportamento humano, de modo a que este seja mais solidário, cooperante, salutogénico, construtivo e transformador. Terá de ser sempre o Humano na sua decisão e no seu agir, e não os seus artifícios, a exercer o movimento civilizatório de renovação e transformação da realidade dada.
O que vos apresento aqui é apenas mais uma reflexão para diálogo e pensamento. Uma vez que como psicólogo, esta realidade acrítica perante a realidade presente gera preocupação, pois já estão bem documentadas as consequências de tal alheamento.
Sim, hoje vamos refletir um pouco sobre a IA. Os nossos conhecimentos são escassos e limitados, de forma que apenas se inicia aqui uma possível reflexão que se desenvolverá com o passar do tempo, acrescida de progressivas e novas aprendizagens, decorrente de diálogos e reflexões a realizar.
Porque devemos falar sobre inteligência artificial? Porque esta interfere e altera o nosso modo e padrão de relação inter-humana, interfere com a nossa forma de estar na realidade concreta e natural, porque as fronteiras do espaço e tempo estão radicalmente alteradas com a massificação de realidades virtuais.
Um dos autores e pensadores que chamo para diálogo é o médico e neurocientista brasileiro, Miguel Nicolelis, o responsável chefe pela criação do primeiro exoesqueleto humano. Devem-se recordar do pontapé inicial do último mundial de futebol realizado no Brasil, Nicolelis foi o chefe da equipa que o realizou.
De acordo com Nicolelis, a IA refere-se a sistemas computacionais baseados em grandes bancos de dados de informação. Ela baseia-se no passado, no já conhecido, no acumulado, daí a grande necessidade de armazenar dados. A sua linguagem é essencialmente binária, sim e não, zeros e uns. O cérebro humano não pode ser reduzido a um algoritmo, ou seja, a um conjunto de procedimentos precisos, não ambíguos, padronizados, eficientes e corretos, baseado neste modelo binário. Como refere o psicanalista português Jaime Milheiro (pensando no campo da saúde): “as dores não têm algoritmos nem computadores. Têm expressão e necessidade de expressão sejam quais forem as suas origens e as suas potencialidades de tratamento.”
Nicolelis defende que a inteligência artificial jamais vai reproduzir um cérebro humano, mas o cérebro humano é capaz de se transformar, de imitar, emular um sistema digital. Este é problema, o embrutecimento das nossas funções cerebrais. Quando transferimos em excesso e sem limites, funções que são nossas por desenvolvimento e natureza potencial, arriscamo-nos a perdê-las, aqui prevalece a velha máxima a função faz o órgão. A diminuição progressiva do uso da nossa memória, com a sua terceirização para sistemas digitais, acarreta consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua plenitude, mas que necessitam de atenção e cuidado. Não que o auxílio digital não tenha os seus benefícios, tem, mas também não devemos minimizar os seus prejuízos, e estes são recorrentemente minimizados, desvalorizados pelas grandes tecnológicas, uma vez que estas estão essencialmente interessadas em vender os seus produtos e serviços, maximizando desta forma os seus lucros e aumentando a dependência do funcionamento da sociedade à utilização dos seus serviços.
Voltando a Nicolelis: “as tecnologias, por si só, não são prejudiciais, mas quando se tenta vender a narrativa de que sistemas tecnológicos são superiores à mente humana, aí sim, começa-se a entrar numa área perigosa.”
Este é o perigo, encarreirar neste discurso de uma forma acrítica e pouco ponderada. Prossegue Nicolelis: “o uso excessivo da tecnologia começa a amputar, a podar, todos os atributos humanos que não são digitais (…). A Intuição, criatividade, inteligência, espontaneidade, empatia, nada disso é definido por sequências de um e zero. Existem infinitos graus de diferentes tons entre um e zero. E o que define o sistema analógico é a continuidade, o infinito de valores que podem ser assumidos”.
A inteligência é uma propriedade emergente de um sistema orgânico, que não foi construído, ele evoluiu na sua relação com o ambiente e em contacto com outros membros da espécie humana. Neste contexto o cérebro humano é plástico, extremamente moldável às contingências do mundo.
A nossa forma de aprender é por meio do contacto social essencialmente de pessoa a pessoa e em relação palpável com o mundo por inteiro. Tal como um pintor precisamos de todas as cores possíveis, tal como um músico, necessitamos de todas as notas e suas escalas possíveis para criar música. Assim é a inteligência humana, necessita da sua inteireza para manifestar o seu potencial. Ela aspira a fazer parte da grande “sinfonia da vida”, sem atalhos nem abreviaturas.
Ao falar de aprendizagem falamos de uma aprendizagem com rosto e sentir humano, não pixilizado, não fragmentado, nem com primazia digital.
Como defende o neurocientista francês Michel Desmurget, o consumo do digital e a digitalização progressiva e massiva de tudo o que é vivo e orgânico está a prejudicar seriamente o desenvolvimento intelectual, emocional e a saúde dos nossos descendentes, crianças, jovens e adolescentes, ou seja, o futuro da humanidade. Veja-se o aumento das dificuldades de atenção, os atrasos no desenvolvimento da linguagem, a ansiedade, as dificuldades na memorização, entre outros. A ubiquidade digital oferece o oposto do salutar, nomeadamente, o bombardeamento percetivo constante, a derrocada das trocas interpessoais (especialmente as intrafamiliares), as perturbações do sono; o aumento dos comportamentos sedentários, a subestimulação intelectual crónica, entre outros. Os desafios são grandes, estejamos atentos e vigilantes em cuidado. Por hoje ficamos por aqui. Voltaremos a este tema com toda a certeza. Até breve.
1 Expressão do psicanalista argentino Gustavo Dessal.
Sugestões de Leitura |
• Desmurget, M. (2021). A fábrica de cretinos digitais: os perigos dos ecrãs para os nossos filhos. Contraponto.
• Milheiro, J. (2020). Ensaio sobre os Humanos... Edições Universidade Fernando Pessoa.
• Nicolelis, M. (2023). O Verdadeiro Criador de Tudo: Como o Cérebro Humano Moldou o Universo Tal Como o Conhecemos. ELSINORE.
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