Para onde corre o Rio?
Para o mar,
oceânica imensidão.
Nele repousam sedimentos,
marcas inquietas de torrentes,
fluxos e refluxos do Tempo,
vestígios de uma vida que corre.
Contemplo a obra, “Refugiado”, da amiga e artista plástica Gulzar Quintino e penso na nossa condição de sermos humanos, de sermos seres lançados ao mundo e de estarmos em constante trânsito. O mundo humano, este imenso oceano de possibilidades, contratempos, múltiplos destinos, tempestades e acalmias, necessidades diversas.
Lançados a um mundo no qual nos temos de orientar, fazer e construir caminho, descobrir e redescobrir sentidos. Um mundo imenso onde nem sempre existe saber, um saber que nos oriente, um saber que nos diga por onde ir.
Nesta condição de navegantes da vida a orientação possível apenas ocorre pelo que de estável existe, pelo que conseguimos identificar e reconhecer como cardeais orientações. No início descortinamos estabilidade nas estrelas, nas constelações, pontos de referência ancestral. Esse foi o nosso começo, procuramos, perscrutamos sinais aos quais nos “agarrar”.
As constelações são referências primordiais que deram ao Homem o sentimento de constância e estabilidade na eterna mudança e transformação que a dança da realidade acarreta. Desde cedo procuramos essas marcas sinalizadoras, pontos de identificação que nos permitissem situar individual e coletivamente. Falo naturalmente também da necessidade intrínseca e essencial ao desenvolvimento psicoafetivo do ser humano, a necessidade de encontrar no mundo, no outro e em si, referências de acolhimento, abrigo e refúgio.
O Outro que nos acolhe permite-nos orientação pelo rosto de sua humanidade, e assim permite àquele que olha a possibilidade de reconhecimento mútuo e em reciprocidade para desse modo poder começar o caminho da vivência de uma humanidade próxima e comum.
Um destino-caminho que na relação entre humanos permite que cada um se descubra único em conjunto com todos para a partir daí seguir e prosseguir com sua senda singular e plural sem perder a particularidade da sua forma e configuração própria. Sem perder o seu modo de caminhar pelo mundo, sem perder aquilo que é no modo de existir e coexistir.
Ao existir e coexistir é sempre pelo seu engenho, com a sua ciência e pela cooperação com outros que o Homem encontra destinos para a sua viagem humana na “misteriosidade” que é a sua experiência de estar vivo e de ser no mundo.
Além deste pensar global e englobante, ao contemplar a obra de Gulzar, reflito inevitavelmente na crise de rúgio, de abrigo, na falta de de casa-lar que existe na atualidade. Penso na crise de homens, mulheres e crianças que se arriscam para viver uma vida digna e humana. Não baste existir e persistir, é preciso encontrar lugar, partilhar cultura, ter segurança, construir confiança, projetar futuro e isso só se faz possível quando garantimos a possibilidade de encontrar um lugar que possa ser casa para que possamos habitar o mundo. Habitar que para nós humanos é trânsito existencial com necessidade de recolhimento (Casa-Lar), de partilha em comunidade e de reconhecimento mútuo.
Estes homens e mulheres aventuram-se no risco que a afirmação da vida e da dignidade humana lhes exige. Arriscam-se a perder a vida para poder ganhar outra. Outra vida que quando a salvo e após a desumana travessia torna possível a reconstrução que aponta para futuros de sonho-projeto, de criação re-inventiva.
Tal comportamento apenas se faz necessário por desespero, uma vez que no seu lugar de vida, no cais da arriscada travessia já nada espera. Vivem a carência de condições dignas, justas e humanas, ao confrontarem-se com o “beco sem saída a única alternativa que vislumbram é lançarem-se ao perigo do desconhecido, à angústia da incerteza.
Falamos de situações-limite que só ocorrem por inoperância, conivência e insensibilidade por parte de quem detém o poder e pode fazer diferente, mas não o faz. Assiste, mas não age, perpetuando desse modo as condições miseráveis em que esta gente vive. Estes, são gestos omissos que se petrificam e deixam de ser gesto vivo e humano, deixam de Gestar.
Neste bote cabemos todos, levamos o coração nas mãos porque o arrancamos do seu lugar. É vital colocar o coração no seu lugar, no seu local de pertença, pois como refere o divino mestre Jesus: “... onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles (Mateus 18.20.)”. O lugar do coração é o centro das relações, em fraternidade, igualdade e liberdade.
Neste bote que afinal nos é comum, a navegação humana rumará para novos e humanizantes destinos apenas de mãos dadas em gesto solidário de viril força vital e de aconchego maternal. Um gesto que gesta caminhos alternativos e que permite solidez em humanidade. Para que desse modo possamos desbravar a novidade possível. Novos trilhos em humanidade e em esperança, uma esperança que se constrói, mais do que se espera.
Uma esperança-caminho que nos permite começar hoje para concretizar amanhã relacionamentos renovados na amorosidade possível.
É época de fim de ciclo, época de deixar o ano velho para que possa entrar o novo ano, ou como diziam os antigos, novo mundo, outro cosmos, outra Ordem. Neste embalo do novo, desejo-vos novos e renovados começos.
Começos e recomeços que respondem sempre ao ímpeto da vida que quando humana singular e plural se quer realizar e afirmar em plenitude. Recomeçamos?
Sugestões de leitura |
• Shah,I. (1994). Aprender a aprender: Psicología y espiritualidade al estilo Sufi. Paidós.
• Tsé, L. (2004). Tao Te Ching: o livro que revela Deus [tradução e notas de Huberto Rohden]. Martin Claret.
• Tzu,L. (1978). Tao Te King, texto e comentário de Richard Wilhelm. Pensamento.
Fotografias | Refugiado, 2017. Obra da artista plástica Gutzar Quintino.
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