A Experiência de Estar Vivo

A Experiência de Estar Vivo

“Um dia a gente chega e no outro vai embora”, diz a letra da canção “Tocando em frente” de Almir Sater.

Sater na sua mestria de cancioneiro relembra-nos o óbvio, mas que frequentemente esquecemos ou ignoramos, ou seja, o facto de que vivemos num intervalo entre a chegada e a partida. Quando essa hora chega para alguém que nos é próximo ou para nós mesmos, nem sempre sabemos fazer a despedida necessária.

A impossibilidade de fechar o ciclo deixa em aberto algo que de algum modo pede um fecho para poder seguir. Como nos diz o poeta indiano e prémio Nobel da literatura Tagore: “Está na hora de partir. Digam-me adeus, meus irmãos! Curvo-me perante vós e faço as minhas despedidas”.

A vida, a experiência e vivência de estar vivo desenrola-se durante esse espaço de tempo, esse misterioso e amoroso intervalo, e é essa consciência que nos angustia, uma vez que ela nos relembra a urgência da vida, da nossa vida e da sua fragilidade.

É paradoxal pois é precisamente na sua fragilidade, que a vida humana se apresenta grandiosa, pois, reconheçamos ou não, ela está sempre repleta de possibilidades, de necessidades de escolha, sendo incompleta por natureza.
Se há particularidade que caracteriza o ser humano é precisamente esta sua condição de ser abertura e possibilidade, e por esse motivo angustiar-se com isso.

No caminho entre a chegada e a partida da nossa existência o modo como “caminhamos” é decisivo. As condições do caminho, quem nos acompanha, e se acompanha, as opções que reconhecemos, as que temos e que afirmamos, são essas, entre inúmeras outras condicionantes que determinarão o modo como este caminho único, porque é nosso e intransmissível, se realizará.

São as escolhas que determinam o rumo e o destino, já diz o ditado “de que vale o vento estar de feição se não sabes para onde vais”. É imperativo apostar no rumo. Mesmo não o sabendo certo à partida, a aposta é necessária, só depois se confirmará se acertada ou não. Esta é a nossa condição, a de não saber à priori, a de ir sabendo, confirmando ou não as opções.

Somos responsáveis pela vida que levamos, somos responsáveis pela nossa, como pela dos outros. Sim, também a dos outros, pois estamos intrinsecamente ligados, o problema é que tais competências afetivo-emocionais não são inatas, mas adquiridas e apreendidas. Elas são o resultado de uma conquista, a de nos tornarmos mais maduros e cientes do que fazer com o que experimentamos uns com os outros.

Neste caminho que é a vida vão surgindo vários obstáculos, imprevistos, dificuldades, desvios, interrupções, acontecimentos que na sua grande maioria escapam ao nosso controlo.

Ser responsável e descobrir-se como tal é perceber-se coexistente em liberdade partilhada como todos os outros. Esta descoberta, a de se perceber e experimentar livre na relação consigo, com os outros e com o mundo é uma descoberta que decorre de um percurso de maturidade relacional, e não de algo que esteja pronto.

Possuir esta consciência, a de que não temos todo o tempo do mundo, angustia-nos, uma vez que nos confronta com o imperativo da escolha e da decisão. A vida pede-nos compromisso, um comprometimento a cada instante. Compromisso que Vergílio Ferreira enalteceu dizendo: “vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E, no entanto, ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo”.

A vida nos seus instantes, como nos diz Vergílio, é única e irrepetível, e é nesta radicalidade, na urgência da própria vida em que nos encontramos, e com tudo o que isso acarreta que nos angustiamos.

Este é o preço a pagar, o preço da mortalidade, relembra-nos Yalom, o famoso psiquiatra e psicoterapeuta existencial, prosseguindo: “a nossa existência será sempre assombrada pelo conhecimento de que iremos crescer, florescer, e inevitavelmente murchar e morrer.”

O que fazer com o assombro? Só vislumbro uma solução, vivê-lo sem nos tolhermos. Fazer um caminho partilhado durante o intervalo entre a chegada e a partida e viver a aventura da experiência de estarmos vivos, compondo e contando a nossa história individual e coletiva. No fundo acolhendo a vida como ela se apresenta.

Não nos esquecendo que nesta aventura de estarmos vivos em coexistência de uns para com os outros emerge o grande desígnio da convivialidade humana, o de poder viver uma vida ética, e isso implica-nos na necessidade de educarmos homens e mulheres para viverem com dignidade e honra e em respeito de uns pelos outros, não estes ou aqueles, mas todos os outros.

Para uma consciência aguçada, o confronto com a finitude apresenta-se como a possibilidade de perda, “ter ou não ter”, “ser ou não ser”, não que ter e ser sejam a mesma realidade, mas tanto uma como outra dimensão, ter e ser, confrontam-nos com essa possibilidade, a de perder.

Perder também é separar-se, ao perder de algum modo separo-me, e essa experiência acarreta a necessidade de se realizar o luto. Quando esse luto fica em aberto abre espaço para vulnerabilidades crescentes que em regra expõem fragilidades, e quer tanto umas, como outras necessitam de ser acolhidas e de serem cuidadas.

Quando a perda nos expõe a vulnerabilidade, torna-se necessário aprender a conviver com a ausência. Quando assim é, o que nos resta é guardar e cuidar da memória dos afetos presentes nas histórias tecidas de uma vida conjunta. Cuidar da memória viva que nos habita, cuidar do legado, da presença da imagem do outro como um objeto total, porque introjetado na sua integridade para que a ausência não ganhe lugar, não conquiste espaço e se preencha com a dor.

Fazer o luto a seu tempo, é necessário. O luto faz-se acolhendo o que vem. Acolhendo toda a qualidade de emoções para que no colorido da vida as memórias da experiência vivida façam a sua morada em nossa intimidade.

O luto faz-se a seu tempo, mas precisa de tempo e condições para “fermentar”. No início a dor da perda de alguém, ou de algo muito importante (porque o trazemos para dentro), acarreta uma dose de sofrimento intenso ao qual é difícil escapar, a não ser por um estado de negação ou anestesia emocional prolongada com as consequentes repercussões danosas para a pessoa e para os outros que com ela convivem. Como afirma o neurocientista italiano Giovanni Frazzetto: “para os que sofrem, o tempo prossegue a um ritmo diferente, as estações do ano, os dias, as horas e minutos arrastam-se como se a própria Terra abrandasse a sua rotação. A perda inclina o plano da nossa existência.”

O mundo vivido pela pessoa que experimenta o sofrimento da perda, e depois o luto, ganha a tonalidade afetiva correspondente ao seu sentir.

Em plano inclinado, para usar a expressão de Frazzetto, só existe uma possibilidade, em primeiro lugar, escorregar, cair, sem resistência, para depois poder vir a perceber qual o grau de “aderência afetiva” do chão que se pisa, e só depois, pausadamente, e pé ante pé começar a subir, escalar o sofrimento até que um novo plano se apresente.

Nesta queda e subida, o melhor será estar devidamente acompanhado, ainda que num primeiro momento possa ser apenas uma companhia que se faz presença, seja um amigo, um familiar, para depois num segundo momento esse acompanhante ser presença e escuta, como sejam um psicólogo, um psicoterapeuta ou de preferência por e com todos.

Nesta queda e subida que é o processo de luto, tem-se observado um padrão que vai ocorrendo por fases. Trata-se de processo que cada um e cada uma vai viver ao seu modo e seu jeito, ou seja, como um processo único, individual e singular.

Auxiliamo-nos novamente de Giovanni Frazzetto que descreve sucinta e esclarecedoramente as fases do luto da seguinte forma: “a perda é insuportavelmente traumática e o estado de negação funciona como um filtro conveniente que apenas deixa entrar aquilo com que se é capaz de lidar. Depois vem a raiva de si e dos outros, por não se ter feito o suficiente, por não se ter sido capaz de evitar aquela morte. Virada para dentro, a raiva de si próprio transforma-se muitas vezes em culpa. Por fim, aprendemos a viver com a perda; enquadramo-la, adotando uma perspetiva mais distanciada; aprendemos a curar recorrendo às memórias, atingindo um certo nível de aceitação.”

Frazetto realça e bem, a aceitação como sendo em certo nível, pois nunca é total, fica sempre a marca de uma cicatriz que compõe a nossa história e o nosso caminho pela vida, porque no mistério que é poder viver a experiência de estar vivo, “(…) Só levo a certeza de que muito pouco sei ou nada sei…” (Almir Sater).

Sugestões de Leitura |

Frazzetto, G. (2014). Como sentimos: o que a neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções. Bertrand Editora. 

Yalom, I (2016). De olhos fixos no sol: ultrapassar o terror da morte. Edições Saída de Emergência.

Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

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