Ecologia e Humanização

Ecologia e Humanização

Não é fácil defender-se a causa ecológica nos nossos dias. Por mais que se fale da importância da sensibilidade para a mesma, o desânimo, perante o persistir de comportamentos que sabemos contrários a tal causa, assola a muitos. Muitos de nós queremos sinceramente inverter a tendência, em parte provocada pela ação humana, do aquecimento global e, inerentemente, das alterações climáticas. Mas uma questão deve ser colocada: será que o lograremos?

Os sinais, múltiplos e diversificados, não são animadores. Nunca como hoje se usou (e a abusou) de aparelhos de ar condicionado e de refrigeração; se explorou e consumiu combustíveis fósseis; se fabricaram baterias elétricas irrecicláveis e repletas de materiais que, a longo prazo, são mais poluentes do que os mecanismos que elas vieram substituir; erodiu-se a crosta terrestre em busca de materiais raros essenciais para o fabrico de uma miríade de pequenos aparelhos dos quais já não nos conseguimos desapegar.

Sejamos francos: queremos uma coisa, mas vivemos, e temos que viver, de um modo que não nos permite ter o que queremos. Eis algo que, para grande prejuízo da causa ecológica (que não pode jamais prescindir de olhar para o ser humano), parece transformar os grandes arautos da ecologia em pessoas insinceras. Ocorre que eles apenas são pessoas como nós: defensores de grandes voos, mas não conseguindo levantar os pés, pois sendo componentes de uma atmosfera humana que, por todo o lado, nos obriga a arrastar os mesmos pelo chão.

Na base de tudo isto está um grave problema de desconhecimento da ampla realidade de que se o Cosmos é para nós; nos também somos para ele. Ele é o horizonte de possibilidade de existirem seres humanos, mas nós somos seus cuidadores, e se não o formos não estamos a ser quem precisamos de ser. Por outras palavras: a ecologia realiza-nos, mas apenas se a humanizarmos. Ficar apenas por uma das partes da antes referida correlação é ficar sempre aquém da “verdade plena”, e se esta – que até pode ser esquecida, mas nunca destruída – anda, usualmente, de “mãos dadas” com o abrir dos nossos horizontes relacionais e de realização, as “meias-verdades” andam, sempre, a par do fechar desses mesmos horizontes, pois por mais que não se esqueçam, destroem.

Ignorar o que foi apontado no parágrafo anterior, leva a que, geralmente e nas nossas preocupações ecológicas, não passemos das palavras para as, por vezes difíceis, tomadas de decisão levadas à ação. Deveras, em vez de começarmos pelo necessário, passarmos, depois, para o possível e só por fim tentarmos fazer o impossível, invertemos esta sequência. Assim, não só desistimos de conservarmos o sistema ecológico (do qual fazemos parte integrante), como nos entregamos egoisticamente à sua exploração, numa alienação, verdadeiramente dilacerante para a nossa consciência, das nossas convicções. Recordemos: a rejeição do egoísmo é, em qualquer circunstância, o teste e até a definição da humanização.

Note-se que, a antes evocada ideia de “conservar”, não pretende remeter para um qualquer sistema, integrado ou não, de preservação museológica do nosso meio ambiente, como se o Cosmos devesse ficar encerrado inertemente dentro de um frasco. Ela evoca, isso sim, a determinação de nos envolvermos na sua apreciação estética, no seu conhecimento e na sua transformação amorosa na benquerida casa de todos nós: de nós que hoje estamos vivos e daqueles que virão depois de nós. Se isto não ocorrer, deixaremos de nos relacionar humanamente com tal Cosmos e passaremos, indeclinavelmente, a ter que enveredar por vivências cosméticas; isto é: de mero disfarce do que de fraturante causámos nele. Sim: este Cosmos não é desvalorizado por falta de realidades deslumbrantes, mas porque deixámos de nos deslumbrar com ele.

Não tenhamos dúvida alguma: nós somos parte integrante dos grandes problemas ecológicos. E somo-lo, pois não vivemos de um modo saudável aquilo que nos constitui como seres humanos. Se não o vivemos, isso deve-se ao facto de, nomeadamente e no que pessoalmente estimo ser das realidades mais gravosas que nos assistem nos dias de hoje, nos entregarmos a modas terapêuticas, a nível psicológico e espiritual, que ainda não passaram pelo crivo do tempo que lhes dá aquela imprescindível garantia de serem humanas e humanizadoras.

Isto é, justamente, outra vertente do mesmíssimo problema apontado no terceiro parágrafo deste texto: queremos melhorar, mas, por acharmos acriticamente que o “mais novo” e “brilhante” é sempre melhor do que o “mais antigo” e “despretensioso”, continuamos a arrastar-nos na nossa mediocridade. Sinal disto, é que achamos que os computadores, televisões, prédios, telemóveis, etc., são o comum de uma vida plena, quando eles deviam ser o incomum face às pessoas, às árvores, aos animais, etc. Se a poesia ainda for o retrato da nossa “alma”, vejamos se pululam por aí odes àquele primeiro conjunto de realidades, ou se, apesar de tudo e como sinal de uma cisão entre o nosso mais íntimo e o nosso atual viver "quase-mecânico", ainda são mais comuns os poemas que evocam o segundo.

Não são apenas as fraquezas políticas, as ambições das grandes multinacionais, as supostas éticas neutras das grandes empresas tecnológicas, os grandes e cegos poderes financeiros que têm (ir)responsabilidade no que estamos a viver a nível ecológico. Nós estamos no meio de tudo isso sempre que nos recusamos a orientarmo-nos por critérios e prioridades que em vez de nos levarem de “bem a melhor”, nos fazem deslizar de “mal a pior”. Ou seja: sempre que, desconhecendo quem somos e podemos ser, nos entregamos a atitudes e comportamentos que, sendo genuinamente insustentáveis, dão força a um “estado de coisas” que nos impede de melhorar e, assim, de cuidar deste maravilhoso Universo de que somos, a diversos títulos, inseparáveis. 

De facto, aquilo a que (erradamente) chamamos o “meu corpo” (e que, na verdade, é o suporte material desse mesmo corpo) não é a porção do Universo que possuímos totalmente, mas a totalidade desse Universo que gerimos parcialmente. Se nós não nos cumprirmos, ele também não e vice-versa. Assim à pergunta “há feridas desgostosas no que vemos à nossa volta?”, só se pode responder: “há”. Todavia, só as há, pois nós mesmos estamos feridos em resultado de comportamentos autoinfligidos decorrentes de não cuidarmos das nossas autênticas relações impregnadas de amor. Assim sendo, não deixemos para amanhã a primavera de um, já atrasado, novo começo das nossas vidas que seja mais atento a tudo que nos pode permitir ser ecologicamente responsáveis, pois, como sabemos, a primavera só o é se vier antes do tempo.

Autor | Alexandre Freire Duarte - Docente e Investigador de teologia na Universidade Católica Portuguesa.