
Tu... Eu e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
Os dados dos Census 2021 revelaram que existem em Portugal, e pela primeira vez, mais pessoas divorciadas do que viúvas. Sabemos que o problema é ainda maior, pois muitos casais não optaram ainda pelo divórcio formal, por falta de meios financeiros, e muitos outros encontram-se em regime de união de facto, pelo que não se enquadram nas estatísticas. A procura de ajuda profissional por parte dos casais, também aumentou nos últimos anos, quer no sentido de recuperar a relação, quer no sentido de uma separação já decidida mas que pretendem ver mediada e orientada por um psicólogo.
A pandemia trouxe a necessidade de estarmos fechados, por longos períodos de tempo, entre quatro paredes, 24 sobre 24 horas, com o/a nosso/a parceiro/a, e isso demonstrou-se um desafio que muitos não conseguiram superar. Como profissional de saúde mental, não quero com isto dizer que a pandemia foi a culpada por tantas relações profundamente abaladas, sabemos que estes casais já não se encontravam bem antes dela, e por isso não lhe sobreviveram.
O grande problema associado aos confinamentos foi o de exacerbar o efeito de conflitos latentes. Não que o conflito, em si, seja algo a evitar numa relação a dois, antes pelo contrário, o conflito é inerente à relação, possui um carácter funcional quando resolvido de forma construtiva, constituindo assim uma oportunidade de reconexão, de crescimento e de evolução. É quando o conflito é mal gerido pelos elementos do casal, que a relação se deteriora. Se este não souber usar a comunicação de uma forma consciente, compassiva e assertiva, dá-se o apocalipse: deixam de haver apenas dois elementos na relação, passando a existir seis: tu, eu e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, prontos para a destruição.
Segundo John Gottman, especialista em dinâmicas relacionais, são estes quatro padrões comportamentais os grandes responsáveis pelo caos nos relacionamentos conjugais: a crítica, o desprezo, a defensividade e a obstrução. O psicólogo e a sua equipa avaliaram a comunicação de 79 casais norte-americanos, para perceber a frequência destes comportamentos disfuncionais em 15 minutos de conversa, usando-a como factor preditor do divórcio, com uma taxa de precisão de 93% quando em conjunto com questionários de avaliação da satisfação na relação. O estudo foi levado a cabo ao longo de 14 anos, durante os quais 21 dos casais acabaram por efectivamente se separar, o que permitiu aos investigadores comprovar a teoria de que estes padrões comunicacionais específicos estão associados ao divórcio. No entanto, e como para grandes males, grandes remédios, os autores também trabalharam no desenvolvimento de antídotos para cada um destes comportamentos, ou seja, formas de gerir o avanço desenfreado destes quatro cavaleiros na comunicação e consequentemente o seu efeito na saúde conjugal.
No que diz respeito à crítica, ela manifesta-se pelo ataque verbal a aspectos da personalidade e/ou carácter do/a parceiro/a, em vez de focar a comunicação no comportamento gerador de mal-estar. Quando presente na comunicação de uma forma recorrente, este cavaleiro traz com ele sentimentos de culpa, injustiça e ressentimento. O antídoto para este padrão é abordar a comunicação de uma forma gentil, redirigindo o foco para si mesmo, pensando: o que é que eu sinto e o que é que eu preciso? Esta atitude pode prevenir a escalada negativa na comunicação, colocando a ênfase na tomada de consciência de uma necessidade e na manifestação da mesma ao outro, sem o culpar ou criticar.
O desprezo, por seu lado, manifesta-se por uma visão do outro como moralmente inferior, usando uma comunicação marcada por sarcasmo, cinismo, chamar nomes, e comportamentos não-verbais depreciativos como revirar os olhos ou suspirar quando o outro fala. Para Gottman, este cavaleiro é “o beijo da morte” nas relações, originando sentimentos de raiva e desgosto. Uma forma de contrariar este padrão, segundo o autor, é construir uma cultura de apreciação, compreensão e respeito na relação. Através de um reforço de pequenos gestos de apreciação, afecto, gratidão e respeito, cria-se uma perspectiva positiva que protege o casal de sentimentos de desprezo. Gottman usa a metáfora da “conta bancária emocional” para explicar que para cada interacção negativa - levantamentos - têm que existir cinco ou mais interacções positivas - depósitos - para que o saldo da conta bancária emocional do casal seja sempre positivo.
Quanto à defensividade, esta manifesta-se por uma atitude de autoprotecção através de comportamentos de indignação e vitimização, bem como de culpabilização do outro pela totalidade do problema. Para se proteger da devastação provocada por este cavaleiro na relação, o casal pode investir na tomada de responsabilidades individuais no conflito, trabalhando no sentido de conseguir um compromisso que tenha em conta as necessidades de cada um.
Finalmente, a obstrução ou distanciamento emocional acontece quando um ou ambos os elementos do casal deixam de investir na comunicação, criando um muro que os distancia um do outro e da resolução positiva do conflito. Este cavaleiro surge frequentemente quando a resposta emocional ao conflito é demasiado intensa, desencadeando mecanismos internos de “luta ou fuga” que se tornam fisicamente insuportáveis (aumento do ritmo cardíaco e descargas de adrenalina e cortisol no organismo). O antídoto para este comportamento passa pelo desenvolvimento do autoconhecimento de cada elemento do casal, de forma a tornarem-se mais conscientes das suas emoções, reacções, necessidades e limites durante o conflito, ganhando, assim, maior capacidade de auto-regulação emocional. Pedir uma pausa ao outro para permitir o abrandamento fisiológico da resposta de “stress” através de actividades calmantes e de autocuidado, antes de esta originar um bloqueio na comunicação, deixa em aberto o caminho para a reaproximação e resolução do conflito.
Importa, pois, ressalvar que não podemos deixar a relação cair nas mãos destes Quatro Cavaleiros do Apocalipse, se queremos mantê-la saudável, funcional e satisfatória, e para tal é essencial que estejamos atentos às suas investidas, trabalhando activamente em comportamentos que nos lembrem e relembrem, a nós e ao/à nosso/a parceiro/a, que na base da comunicação, e do próprio conflito, tem que prevalecer sempre e invariavelmente o amor.
Texto escrito segundo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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