Um Retrato do Afeganistão

Um Retrato do Afeganistão

O dedo do Ocidente? Ou uma questão religiosa?

Desde 1798, são inúmeras as operações militares dos EUA em outros países, demasiadas e na maioria das vezes (se não em todas) por razões político-económicas. São 223 anos de guerras, envios de tropas, sustentação logística de governos ou movimentos, para não falar das “atividades” dos serviços de inteligência. Será que o “reinado” de Biden vai começar um novo capítulo da política externa norte americana? Começam a ser dados alguns sinais positivos, mas sabendo da bipolarização política que tem dividido e radicalizado a mente dos americanos, ainda é cedo para perceber se as novas “tendências” vão ser a regra ou apenas uma exceção.

No século XXI, que ainda vai no início, já se podem contabilizar 34 interferências militares americanas em outros países. Ao analisar os últimos 223 anos, rapidamente chegamos à conclusão alarmante que, esse fenómeno aconteceu por 240 vezes, sem contabilizar todos os eventos ocorridos em território Americano e Mexicano. Portanto, facilmente se consegue concluir que a média ultrapassa 1 intervenção americana no exterior por ano. Números que dão que pensar. Em boa verdade, não se pode apenas apontar o dedo aos EUA, nestes assuntos, os Russos também não são santos.

Tantas têm sido as interferências dos países ocidentais na Ásia que já é considerado normal, poucos veem com estranheza esse fenómeno.

O leitor já percebeu que não é possível falar de todas as intervenções ocorridas, portanto, à luz da atualidade, quero apenas focar-me num país da Ásia central, o Afeganistão, um país com uma localização geoestratégica importante, o elo de ligação entre o Médio Oriente e a Ásia Central ou mesmo, ao “subcontinente” indiano.

É justo dizer que a situação que o país hoje vive, também se deve ao jogo político entre os EUA e a Rússia, mas, em bom rigor, a complexidade, a violência e os problemas do país e da sua população começam muito antes.

Desde a Antiguidade, a guerra é uma constante na região onde hoje fica o Afeganistão, local já ocupado no século VI A.C. pela civilização bactriana, formada por um povo que incorporava elementos das culturas hindu, grega e persa. Depois disso, o território foi atacado por sucessivos invasores ao longo do tempo. Um autêntico “cocktail” de culturas, costumes e tradições diferentes costuma estar na génese de diversos atritos.

Um famoso estudioso marroquino, Ibne Batuta, que visitou a região em 1333, escreve:

"Nós viajamos para Cabul, antigamente uma grande cidade, o lugar agora é habitado por uma tribo de persas chamados afegãos. Eles vivem nas montanhas e desfiladeiros e possuem considerável força, e são muitas vezes salteadores”.

Segundo The Encyclopaedia of Islam, Firishta, um importante estudioso persa (1560-1620), escreve sobre os afegãos:

Os homens de Cabul e Khilji voltaram para casa; e quando eles foram questionados sobre os Muçulmanos do Coistão (as montanhas) e como estavam as coisas por lá, eles disseram… "Não chame de Coistão, mas Afeganistão, pois não há nada lá além dos afegãos e os distúrbios."

No que toca à religião, quase toda a população Afegã segue a religião muçulmana, sendo a maior parte (cerca de 80%) sunitas e uma menor parte xiitas (20%), embora existam pequenas minorias de cristãos, budistas, parsis, sikhs e hindus.

O Islão é muito mais do que uma religião, está estruturado numa proposta de civilização que articula princípios religiosos e políticos. Portanto, quando olhamos ou analisamos a realidade do Afeganistão é preciso ter em conta que as divergências passam (em muito) por diferentes modelos de civilização.

Apesar dos sunitas e xiitas coexistirem há séculos e de terem muito em comum, as diferenças entre eles explicam boa parte dos conflitos no Oriente, nomeadamente em questões de doutrina, rituais, leis, teologia e a própria organização da sociedade.

A divisão remonta à morte do profeta Maomé, que deu origem a uma luta pelo direito de liderar os muçulmanos, disputa esta que continua até ao presente. Uns defendiam que o novo lider deveria ser escolhido pelo povo (sunitas), outros, os xiitas, defendiam que o sucessor deveria ser alguém da família do Profeta, mas como Maomé não tinha filhos homens, o candidato natural para substitui-lo seria o seu genro, Ali.

O nome sunitas vem da expressão "Ahl al-Sunna" – "o povo da tradição", o que se refere a práticas derivadas das ações do profeta Maomé e dos seus parentes, enquanto os xiitas começaram como uma fação política "Shiat Ali" ou partido de Ali (genro do profeta Maomé).