
Uma Verdade Nuclear: Olha para mim e Reconhece-me
Paira uma nuvem escura sobre a Humanidade, assistimos novamente a uma guerra hedionda em direto perversamente transmitida ao jeito do “Big Brother”. Todas as guerras são repugnantes e reprováveis, mas quando a sua irracionalidade atinge o estado atual, o de uma ameaça nuclear, o irracional roça o absurdo, e o lado mais perverso da personalidade humana mostra o seu rosto.
Pouco vale o desenvolvimento da tecnologia e de todo o conhecimento científico, se emocionalmente continuamos imaturos, subnutridos de amor e carentes de afetos genuinamente cuidadores e potencialmente transformadores da pessoa e do mundo.
As relações humanas estão cada vez mais frágeis, precárias, pulverizadas por aparições essencialmente virtuais. A voz pessoal fragilizou-se no mundo “democrático” e virtual da internet onde todos “têm voz”, mas no qual poucos são realmente escutados.
Todos têm voz para dizer o quê?
Olha para mim e reconhece-me é o mote para que possamos identificar a grande falta que fragiliza os vínculos humanos, o reconhecimento do outro como legítimo outro, independentemente, da cor, crença, religião, orientação sexual, ou nacionalidade.
Somos todos “húmus”, Homens, que na sua raiz etimológica significa precisamente isso - terra fértil. Ser Homem, humanidade é poder vir a ser fértil, e não ser árido ou seco. Se assim for, será terra onda nada floresce.
Erich Fromm, sociólogo e psicanalista alemão exilado nos EUA em fuga à Alemanha de Hitler, referia-se a propósito da sobrevivência humana nos seguintes modos: “até agora as probabilidades de que uma atitude preventiva (face a uma guerra nuclear) e racional seja tomada são desanimadoras. Não porque ela seja impossível segundo circunstâncias realísticas, mas porque em ambos os lados há uma barreira mental feita de clichês, ideologias ritualísticas, e mesmo uma boa parte de loucura que impede as pessoas — líderes e liderados — de ver com realismo e precisão quais são os factos, e de separá-los da ficção e em consequência, reconhecer a existência de soluções outras que não a violência”.
É urgente perceber a mudança catastrófica, passar por ela, mas ir além dela, mudar de rumo, ampliar a consciência no sentido de uma transformação concreta e salutar. O mesmo jeito de caminhar, a mesma orientação, leva ao mesmo destino, leva há habitual forma de sempre, onde a máxima perversa seria: mudar sim, mas que continue tudo mesma. Há uma insanidade de milhões, e “o consenso no erro não faz dele uma verdade” (Fromm).
Aqui surge a necessidade de compreensão de uma personalidade com claros e vincados traços paranoicos, como a daquele que se apresenta nas nossas televisões e entra em nossas casas a cada dia que passa. Cada vez com maior espanto e perplexidade por parte dos telespetadores, embora, também se exponha a grande contradição, em que uma grande maioria destes ainda assistem a tais acontecimentos e manifestações apáticos e acríticos.
Como defende Fromm “para o paranoico a realidade é baseada na possibilidade lógica, e não na probabilidade. Essa atitude é exatamente a base da sua doença. O seu contacto com a realidade baseia-se numa reduzida margem de compatibilidade com as leis do pensamento lógico, sem exigir o exame da probabilidade real. E não a exige porque o paranoico não é capaz de tal exame. O Seu contacto com realidade é extremamente frágil e instável. A realidade para ele é essencialmente o que existe dentro dele, as suas emoções, receios e desejos. O mundo fora dele é o espelho ou a representação simbólica do seu mundo interior”.
Deste modo percebemos bem as dificuldades de diálogo que existem quando entramos em contacto com o paranoico, o que rege a sua relação com o outro e com o ambiente é o seu mundo restrito, fechado e empobrecido. Na ausência de contacto fica cada vez mais isolado, e os seus sintomas tendem a intensificar-se, o seu poder só tem força quando suportado por terceiros, geralmente baseado no medo. Sendo o grande medo do paranoico, a ausência de medo do outro, retirando por essa via, ou seja, pela coragem, a sua base de controlo. O paranoico tem medo que o medo acabe.
Ele não lida bem com a autoafirmação e segurança dos outros. O seu reinado só termina quando quem o suporta o deixar, quando a coragem vencer o medo. O paranoico sem o suporte do medo do outro fica reduzido ao seu tamanho, dá de caras com a sua pequenez e isolamento.
O paranoico habita numa personalidade com traços psicopáticos, o psicopata não ama, nem tem moral. Para ele dar-se, entregar-se é proibido. Segundo o psiquiatra André Gaiarsa o seu único valor é o valor do poder, da posse, da invasão do terreno do outro para se apropriar daquilo que não lhe pertence, mas que o quer fazer seu. Valores humanos mais elevados não cabem em si, a não ser como disfarce para atingir os seus objetivos macabros, pode ser o lobo disfarçado de cordeiro se isso o auxiliar nos seus planos de posse.
Ele tem medo de ser invadido, e por isso transforma-se num invasor, assim defende-se do seu medo irracional, mas fica cada vez mais isolado.
Entrar em contacto com ele é como entrar num terreno minado, existem armadilhas por todo lado (Gaiarsa). Sofre de uma grande privação de liberdade interior e por consequência liberdade exterior. Tem a tendência para se impor ao ambiente. Como dissemos vive em função do poder, que para ele representa a realização.
Ele tende a usar os outros, as pessoas são os meios e os instrumentos para os seus fins. Trata-se de uma vida estéril, pegando no que dissemos anteriormente, é pouco Homem, ou seja, pouco fértil, de humanidade escassa e árida.
Perante o exposto o leitor dirá: não há nada a fazer. Pelo contrário, a nossa afirmação vai pelo caminho da saúde, da educação para uma cidadania planetária como defende Morin, onde cada vez mais nos possamos reconhecer cidadãos de um planeta comum, muito além da pequenez que os limites de uma nacionalidade, de um pedaço de terra e de uma cultura quando fechados nos podem impor, não que uma cultura própria seja prejudicial, não é, mas é tanto mais benéfica quando aberta e universalista.
Há que continuar apesar de tudo, há que caminhar na esperança, pois a esperança também a perdem as nações e as pessoas, se desaparece a fé a força e a coragem, se perdem este potencial, ela desaparece seja por falta de vitalidade ou pela destrutividade irracional que desenvolvem (Fromm).
Existe a possibilidade de efetivamente se mudar o rumo dos acontecimentos, a opinião pública tem um poder enorme, que regra geral não utiliza, porque não se faz ouvir. Enquanto não se fizer ouvir, enquanto não se expressar com voz própria, outros tomarão a sua voz e falaram por ela. É assim que se forjam as opiniões alheias e impróprias, porque não são efetivamente posse real das pessoas, são de outros.
Que cada um tome a sua voz e se faça ouvir. Que cada um ouça e realmente escute, que cada um olhe e realmente veja. Que a maioria se faça notar, se não, o que ficará será uma sombra do possível, um esboço deturpado do potencial humano de mudança e transformação que possuímos e não reconhecemos.
Fotografia de Vítor Fragoso. "Salvador do Mundo" (Deus) presente no Museu Alberto Sampaio em Guimarães.
Sugestões de leitura |
• Fromm, E. (1966). A sobrevivência da humanidade. Zahar Editores.
• Gaiarsa, A. (2013). Psicanálise e liberdade: a análise como processo de emancipação. Zagodoni Editora.
• Gaiarsa, A. (2017). O que é angústia. Brasiliense.
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