Não Somos Humanos por Natureza

Não Somos Humanos por Natureza

Ser humano é uma potencialidade repleta de possibilidades. Se há uma natureza intrínseca ao Homem, ela é antes de mais o seu vasto património biopsicossocial e cultural. Património que se apresenta essencialmente como abertura. Uma abertura ao que é do humano, e ao mundo que o próprio Homem cria e recria. Ser humano é ser abertura a todas estas dimensões, como também àquilo que o transcende, não como algo metafísico, mas a partir da pessoa concreta que é (Hycner). O Homem vive a partir de si, mas é capaz de ir além de si, competência esta que se vai desenvolvendo com o amadurecimento. Ser humano é sê-lo em potência de realização.

O que trazemos para a vida, através dela própria, é a início um conjunto de possibilidades. De início somos todos uma promessa. Cumpre-nos enquanto família, comunidade, sociedade, só depois como indivíduos, manter essa promessa em aberto, criando condições para que o que de melhor em humanidade se anuncia em cada um e em comunidade se realize. No caso do humano, é poder criar e possuir condições para vir a ser o melhor de si, para poder ser aquilo que em verdade se é.

São estas dimensões, bio-psico-socio-culturais, que nos moldam enquanto humanos. São elas que dão forma às possibilidades em potência que cada um transporta. No entanto, como potência apenas se realizam se as condições propícias se verificarem, nomeadamente, uma relação humana de cuidado em amorosidade. Condição que o bebé humano ganha através de uma relação atenta e cuidada.

No bebé a sua humana pessoalidade apenas se torna possível numa relação entre humanos, uma vez que é na relação inter-humana que ganha a possibilidade de ser, porque confirmado enquanto pessoa em potência.

A sua pessoalidade confirma-se quando o bebé é acolhido, quando é confirmado pelo olhar do outro que o cuida, quando os cuidadores lhe proporcionam aquisição progressiva da “tomada de posse” de um lugar de cultura, porque doador e amplificador de sentido. O bebé confirma-se na sua possível pessoalidade quando respeitado no tempo e ritmo que lhe são próprios. Quando assim é, a pessoa e a sua humanidade vão ganhando espaço e forma que se vai apresentando progressivamente unida e total na sua inteireza. Somos o que somos pelo que fomos, e somos o que somos pelo que somos com os outros.

Tendo em conta o referido e considerando a realidade atual que se caracteriza pelo desvario do humano, porque perdido na insanidade dos seus conflitos bélicos, consumido pelos consumos que o consomem, cansado pela exaustão de um ritmo de vida fora do tempo e do lugar que a sua humanidade pede, paradoxalmente, é precisamente a partir desse lugar que a nossa aposta é no humano. Apostamos na possibilidade de ao Homem se apresentar como finalidade a possibilidade de ser humano apesar de tudo.

Vivemos uma distopia, vivemos sem um lugar de sentido e de humanidade. É urgente um horizonte de futuro pois enquanto humanos só caminhamos se vislumbramos outra realidade que se anuncie ou em alternativa se imaginamos algo não real como realizável, como possibilidade. Não estamos a dizer nada de fantasioso, pois tal feito é apenas a confirmação do realizável. Todo o realizado não existia antes.

É urgente resgatar as utopias – outros lugares possíveis para sermos humanos. Utopias não são impossibilidades, são saídas e caminhos possíveis que se apresentam e que se constroem na afirmação da escolha única e singular de cada um. São saídas e caminhos que se nos oferecem à medida que caminhamos por outras veredas, por esse motivo cada escolha é sempre uma aposta única. Não possuímos certezas, mas é vital apostar noutros rumos. Como diz o ditado:

“de que adianta o vento estar favorável, se não sabemos para onde ir. “

Podemos ir para outro lugar a partir do lugar de vida que nos é dado a viver. Como tenho vindo a dizer a mudança é apenas possível a partir de onde estou, do que sou e do que posso, mesmo querendo ser doutro jeito, poder de outro modo e viver noutro lugar. O trânsito para o novo só se realiza a partir do lugar de vida de onde estou, de onde ela acontece. Este trânsito a que nos referimos é o movimento da criatividade e da inventividade.

Enquanto perante a pergunta: podemos fazer diferente? Se a resposta for um sim, então continua a ser possível mudar. Tudo o que realizamos até à data foi sonho-projeto um dia.

Um novo lugar, uma nova vida, um novo jeito de andar pela vida. Um jeito mais inteiro, mais completo em humanidade, como em 1922 tão bem defendia Lewis Mumford: “as nossas tentativas de viver a vida boa estão constantemente a ser pervertidas pelos nossos esforços para ganhar a vida, e entre outras manobras dos lucros e das vantagens, na luta pelo poder, pela riqueza e pela notoriedade, perdemos a oportunidade de viver como Homens completos.”

A nossa aposta é no humano, na sua humanidade em potência. Aposta que na atualidade perante a barbárie da guerra, da violência e do terror, é revolucionária, uma vez que trazer para a cena a potencialidade humana e falar de Amor, de Bondade e de Cuidado é de algum modo subversivo, não que seja novo, mas que é imperativo recordar.

Vivemos tempos sombrios em que “os senhores da guerra” farejam quando o Homem está perdido de si, e fazem-no crer que a paz se conquista com armas e pelas armas.

Armas e mais armas só revelam insana voracidade pela morte, pois jamais alguma arma fez a paz, o que Mia Couto lucidamente nos relembra: “há quem tenha medo que o medo acabe”.

O retrocesso civilizacional é aterrador, assistimos novamente a uma corrida ao armamento, as nações estão novamente a “armarem-se até aos dentes”. Nada de bom vem quando maioritariamente entre humanos se entrepõem as armas.

Recentemente ao assistir a um documentário biográfico sobre Mia Couto, o brilhante escritor moçambicano que nos presenteia com a doçura lusófona do seu português enriquecido e temperado pela cultura africana, e que nos espanta recorrentemente com o parto de novas palavras que tão bem sabe dar à luz. Palavras que quando por nós acolhidas se podem fazer também elas nossas para desse modo circulem em diálogo e em ampliação de sentidos outros em benefício e enriquecimento da quotidianidade vivida.

Retomando, ao assistir ao documentário fiquei a saber o sinónimo da palavra armário, fiquei a conhecer a sua raiz etimológica que conta a história da palavra. A palavra Armário cresceu numa cultura em que era comum a necessidade de um espaço para guardar armas. Origem que revela clara e inequivocamente a sua ancestral natureza bélica, ao que o autor moçambicano na sua genialidade propõe uma nova palavra para a real função do móvel, esta mais adequada à utilidade corrente, nomeadamente – “arrumário” – neologismo criado pelo nosso autor.

Precisamos de “arrumários”, não de armários. Num "arrumário" guardamos histórias, vivências, memórias, lembranças, objetos de utilidade biocêntrica, porque centrados na vida, em Eros, não na morte – tanatos. Bem, no fundo podemos arrumar tudo, a grande questão é o que queremos e desejamos arrumar, e como arrumar.

Já diz linguagem popular, ao seu jeito coloquial: “o que tu precisas é de te arrumar na vida”. Não uma arrumação qualquer, mas uma arrumação que nos permita circular internamente nas paisagens vivas da experiência humana, que na sua relação com o ambiente tende a internalizar-se para depois se exteriorizar novamente com outros e novos coloridos. A vida pede alguma arrumação, ordem no meio do caos.

O “arrumário” serve para arrumar, desarrumar e tornar a arrumar, transpondo para o concreto do quotidiano, ordem e caos, que são duas faces da mesma moeda, estando sempre as duas presentes. Saibamos “arrumar” a humanidade desarrumada, dando-lhe uma nova configuração, descortinando as possibilidades biocêntricas que se anunciam. A nossa aposta é na humanidade como potencialidade em elevada e progressiva evolução criativa.


Sugestões de leitura |
Hycner, R. (1995). De pessoa a pessoa. Summus Editorial.
Mumford, L. (2007). História das Utopias. Antígona.

Ver também | 
Uma Paz que se Educa
A Dor do Sofrimento Escondido
Depressão: Uma Tristeza que se Instala...
Viver com a ansiedade

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