A Dor do Sofrimento Escondido
Olha para mim…
Recentemente vivemos momentos de estupefação, ansiedade e angústia, ao sabermos que um jovem estudante, pacato, introvertido e discreto, planeava meticulosamente um plano para espalhar o terror, matando inocentes. Segundo seu relato, e de acordo com o que foi noticiado por alguns meios de comunicação, seria para desse modo poder ser reconhecido como o primeiro terrorista nacional a fazer algo do género em Portugal. De entre outras coisas, o que nos chama a atenção é o facto de querer ser o primeiro e ser reconhecido por isso, mas já lá vamos.
Do pouco que sabemos sobre este jovem é que sempre demonstrou um comportamento que podemos enquadrar num padrão de isolamento social, não se relacionava com outras pessoas, ou pouco o fazia, e “vivia no seu mundo”.
Sabemos que era filho de pais humildes, pelo menos assim os reconhecem, e que os poucos amigos ou conhecidos que com ele conviveram o descreviam como estranho, com um discurso mórbido, fixado na morte, na violência e em homicídios. Talvez reflexos do mundo em que se encerrou.
Outro facto que nos chama a atenção, é o de ser originário de um meio mais rural ou do interior, facto que é meramente aleatório, possuindo apenas uma ressalva que não é de ignorar, é que ao contrário do que é comum se dizer, até por profissionais de saúde, ou de outras especialidades, este comportamento, tendo em conta o seu contexto e situação, passa tudo menos despercebido. Pois seria bem mais fácil, de o conseguir numa grande cidade, local que precisamente escolheu para dar seguimento aos seus planos. É caso para questionar, a quem não chamou a atenção este comportamento?
Infelizmente, e em regra, aos mais próximos, à família, aos amigos e conhecidos. Não que não lhe prestassem atenção, pois com certeza o testemunhavam, mas não ao ponto de agirem, ou saberem o que fazer. Trata-se de um comportamento que acontece frequentemente ao nível da saúde mental, pais de crianças e jovens só realizam o pedido de ajuda quando já se passaram muitos anos de incidência, manutenção e introjeção do padrão de comportamento disfuncional. Chegados a este ponto, convém recordar, que a saúde mental é uma construção coletiva.
Neste caso, de um modo geral, assim como na maioria das psicopatologias (sofrimentos psíquicos), estão presentes necessidades primárias de reconhecimento das necessidades do próprio, seguidas da resposta ao seu suprimento. Podemos dizer que desde o início a necessidade traduz-se em: olha para mim e reconhece-me. Reconhece-me no que sou, na minha iniciativa e no que faço. Se isto falha desde o início, ficam lacunas básicas no desenvolvimento da criança, que quando não cuidadas tendem a perpetuar-se e a expandir-se.
Parece ser esta a necessidade por satisfazer neste jovem, o reconhecimento da sua singularidade, e o necessário espaço para se conhecer e desse modo poder ser. Tendo este ao que parece procurado, de forma inversa ao sentido da vida e da saúde a satisfação das suas necessidades, de atenção e reconhecimento.
Veja-se o desejo de ser o primeiro a realizar um ato deste calibre, facto que pode decorrer desta necessidade básica, a de algum modo ser reconhecido na sua singularidade, neste caso por um desvio mórbido, perverso e invertido naquele que seria o sentido de uma vida sã.
Ana Paula Relvas, psicóloga portuguesa e terapeuta familiar, no seu já clássico livro sobre o ciclo vital, relembra-nos que família “é contexto natural para crescer. Família é complexidade. Família é teia de laços sanguíneos e, sobretudo, de laços afetivos. Família gera amor, gera sofrimento.”
Se isto falha, abre-se um buraco no tecido afetivo dessa família. Emerge uma lacuna básica, não há sustento, contenção, aconchego, espaço de criação e circulação de sentidos e significados. Fica um vazio. Um vazio que é preenchido por tudo o que for apelo e que crie a ilusão de afinidade, de comunidade. Veja-se a “comunidade” na “rede escura” (Dark Net) que frequentava, essencialmente pela falta de outras comunidades de reconhecimento e afinidades.
Como tão bem nos recorda Virgínia Satir, outro grande nome terapia familiar e das intervenções sistémicas, “família é um microcosmo do mundo. Para entender o mundo, podemos estudar a família: situações críticas como o poder, a intimidade, a autonomia, a confiança e a habilidade para a comunicação são partes vitais que fundamentam a nossa forma de viver o mundo. Assim para mudar o mundo temos que mudar a família”.
O ser humano é sempre um produto da sua realidade. E convém não esquecer que vivemos um período de crises recorrentes que vão corroendo os laços afetivos, fragmentando a família e distorcendo o centro da vida humana – a sua necessária coexistência e a necessidade de vida em comunidade. Somos relação. Somos a qualidade dessa relação.
Vivemos uma crise das relações sociais, das organizações, da pessoa – do sujeito. Estas instâncias estão relacionadas por uma determinação recíproca. No entanto assistimos a uma perda massiva de referentes (necessidade de suporte e contenção).
Afirma a Psicóloga Social Argentina Ana Quiroga, “existe um perigo crescente de fragmentação da sociedade. Perante isto é necessário desenhar um futuro através de um projeto comum”. Urge reunir aquilo que está separado e não esquecer que “a luta pela saúde não é apenas a luta contra a doença, mas contra os fatores que a originam e reforçam.” (Enrique Pichon-Rivière).
Como fica o laço social no meio disto tudo?
O laço social é uma forma de nos relacionarmos, prende-se com a forma como as pessoas se ligam, comunicam e inter-relacionam em convivência social e comunitária, inseridas num contexto e momento histórico particular. O laço refere-se ao modo como as pessoas estão comprometidas num projeto social implícito onde se reconhecem como participantes. Ainda não sabemos muito bem como este novo laço se vai estruturar, o que sabemos é que se estruturará tendo como base o medo, a insegurança e a dúvida, com todas as consequências que isso trará ao nível psíquico.
Não faço julgamentos, nem diagnósticos apressados, apenas reflito fenomenologicamente sobre alguns dos dados e factos vindos a público. Não me esqueço dos meus mestres em psicopatologia, que nas suas aulas nos alertavam para o perigo dos diagnósticos apressados, para o facto de um diagnóstico em saúde mental ser sempre uma hipótese dinâmica que progressivamente se vai confirmando ou não. E que para se realizar um bom diagnóstico é necessário, escutar, ver, e conhecer a história e percurso de vida o mais detalhadamente possível. Ampliando esta avaliação com a escuta do paciente, da família e com o recurso ao apoio de várias especialidades em casos mais graves e exigentes.
Neste caso em particular é preocupante o corridinho a que assistimos nos meios de comunicação de “especialistas” das mais diversas áreas, a realizarem diagnósticos apressados ao sabor do mediatismo com informação tão escassa e fragmentada. Se o acontecimento em si é grave demais para nos preocuparmos, a resposta e reação mediática que se deu não é menos preocupante.
Sugestões de leitura |
• Fromm, E. (1975). Anatomia Da Destrutividade Humana. Zahar Editores
• Relvas, A.P. (2004). O ciclo vital da família: perspetiva sistémica. Afrontamento.
• Satir, V. (2005). Nuevas Relaciones Humanas En El Nucleo Familiar/The New Peoplemaking. Editorial Pax México.
• Quiroga, A. P. (1998). Crisis, procesos sociales, sujeto y grupo: desarrollo en psicología social a partir del pensamiento de E. Pichon-Riviére. Ediciones Cinco.
Ver também |
Vida: Comportamento e Mudança
Depressão: Uma Tristeza que se Instala...
Viver com a ansiedade
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