A Bondade é Subversiva

A Bondade é Subversiva

Em tempos sombrios como os que vivemos o pior que podemos permitir é que nos apaguem a luz que nos habita, que nos calem a voz, que nos paralisem o movimento sensível do corpo. Perante a ameaça que atualmente vivemos começo a reflexão de hoje com um conjunto de desejos que olham o presente e apontam para o futuro.

Desejos são setas para o futuro, são setas orientadoras. Setas que nos mostram outros caminhos e outros destinos a percorrer. São setas que indicam, procuram orientar, não são setas que ferem. São setas que nos apresentam outros destinos, destinos com rosto humano. São no fundo outras possibilidades de escolha, caminhos alternativos como opção à perversão e à crueldade a que se assiste. Esta é uma ameaça à luz da vida, sigamos outro caminho para que a luz não se apague.

Para outros destinos. Saibamos ser uma opinião pública, verdadeiramente pública, porque permite vozes próprias, unidas na sua diversidade. Saibamos cuidar da paz em tempos de guerra.

Saibamos exigir dos nossos governantes a via diplomática, o caminho do diálogo, o desarmamento progressivo e generalizado, ainda que inicialmente esta ação esteja em contramão com o ímpeto atual.

Que os povos falem mais alto que os seus governantes quando estes estejam cegos pelo ódio, obscurecidos pelo poder e mirrados pela indiferença. Quando assim for, que "eles" não sejam a nossa voz, não sejam os nossos olhos, não representem o nosso pensamento. Saibamos dizer "SIM À VIDA APESAR DE TUDO".

Que seja este o “gps” que nos orienta, que o seu centro em nós, seja um íntimo que não se esquece da sua humanidade. Uma humanidade potencialmente amorosa. Uma humanidade que se lembra que para além de sapiens, também é demens, demente, insana, como nos recorda Edgar Morin.

Quando nos esquecemos do lado insano, deixamos de cuidar do nosso “jardim” de saúde.

Mas não vos quero deixar apensas com desejos que procuro cuidar no meu jardim. Hoje para além das setas do destino que apontam estes desejos que vos apresento, gostava aqui de relembrar o contributo de grandes homens e mulheres da nossa humanidade.

Homens e Mulheres cujo elo que os une foi o facto de todos terem vivido o absurdo da segunda guerra mundial. Falo-vos de Einstein, Freud, Hanna Arendt, Erich Fromm, Rollo May, Viktor Frankl, Wilhelm Reich e Pierre Weil. Fiz-me bem acompanhar. Escolhi estes, mas poderiam ser muitos outros e outras.

Este é o desafio. O desafio de nos artigos que se seguem ir dialogando com estes autores de modo a ampliar um pouco a compreensão sobre o fenómeno da violência, e de como guerra e paz, construção e destruição, vida e morte andam juntos. Ignorar a dialética presente na dinâmica das “coisas da vida” é entrar em terreno movediço e perigoso.

Do ponto de vista psicológico ignorar a importância de integrar a agressividade inerente à vida dos seres vivos, em especial do potencialmente humano, é tentar camuflar algo, que quando bem integrado apresenta-se como força dinamizadora e potencialmente expansiva do movimento salutar, do gesto criativo e espontâneo inerente ao que de mais saudável há na vida humana.

Simbolicamente falar do lado “solar”, é saber que em todos há um “lado lunar”. Um lado mais sombrio, obscuro, oculto, não necessariamente mau, mas muitas vezes “mal-amado”. Aqui é que reside o problema, o que é ignorado, desprezado, evitado e mal-amado pode ganhar proporções impensáveis, com consequências danosas para o próprio e para quem o rodeia. A agressividade incontida ganha a forma de violência em todas as suas vertentes.

A nossa aposta é na bondade. A bondade é subversiva, e o seu motor é amor. A vida com eros*1, revela-se contra tanatos*2. Ao agir, eros, transforma tanatos em algo verdadeiramente criador.

Freud no seu último livro, “o mal-estar da civilização”, dedica um dos seus capítulos às questões da guerra. O capítulo “a desilusão da guerra”, é de uma lucidez impressionante, ao ponto de hoje o texto, ser de uma atualidade admirável. Passo a citar:

“A guerra em que não queríamos acreditar é agora uma realidade e trouxe consigo a desilusão. Não é apenas a mais sangrenta e feroz do que qualquer outra guerra anterior, graças ao grande aperfeiçoamento das armas de ataque e defesa, é também tão ou mais cruel, sanguinária e implacável. Infringe todos os limites impostos pelo direito internacional com que se havia comprometido em tempos de paz, não reconhece prerrogativas dos feridos e dos médicos, não faz distinção entre civis e combatentes, ignora a propriedade privada. Destrói tudo o que cruza no seu caminho com raiva cega como se depois dela já não houvesse lugar para o futuro ou para a paz entre os Homens.

Corta todos os laços que uniam os povos em luta, ameaça deixar um ressentimento que por muito tempo tornará impossível o reatar das relações”.

Este é sem dúvida um texto que recomendo para leitura. Freud como sempre nos ilumina a razão, apontado o que está bem aí diante dos nossos olhos, nomeando o que se apresenta, esclarecendo o que nos acontece. Só assim podemos caminhar por um caminho desimpedido, porque clareado, porque desobstruído do obscurantismo.

Como refere Vergílio Ferreira, “na flagrância do mundo esquecemo-nos que somos nós que o pomos a existir”. Possamos nós dar ao mundo outra existência. Assim o queiramos.


*1 Eros ► Amor, elan vital, erótico, construção.
*2 Tanatos Morte, entropia, destruição.

Sugestão de leitura |
Freud, S. (2008). O Mal-Estar na Civilização. Relógio de Água.
FB do Autor | Aqui

Ver também | 
A Dor do Sofrimento Escondido
Vida: Comportamento e Mudança
Depressão: Uma Tristeza que se Instala...
Viver com a ansiedade

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